
Por: Albertino Ramos*
A soberania trocou a solidez do edifício vestfaliano pela profundidade da escavação genealógica, numa acumulação de estratos de poder.
Introdução: Substrato Teórico Legitimador
O conceito de soberania constitui simultaneamente fundamento e linha de fratura na teoria política hodierna. O Tratado de Vestfália de 1648 consagrou a sua arquitetura institucional; todavia, os seus alicerces teóricos mantêm uma evolução permanente, reflexo das profundas transformações na conceptualização do poder, da autoridade e da comunidade. Os atuais desafios globais — do ecossistema de vigilância digital às pandemias transnacionais, passando pelas emergências climáticas — tornam evidentes as limitações dos quadros tradicionais de soberania e conduzem a este “momento constitucional” nos estudos da matéria (Krisch, 2010; Bartelson, 2014).
O presente texto reformula os termos do debate teórico atual mediante uma reorientação epistemológica na conceptualização da soberania — da perspetiva “substancialista” para o enquadramento “relacional”. Neste sentido, os primeiros teóricos concebiam a soberania como poder absoluto residente em instituições determinadas, enquanto a teoria contemporânea a apresenta como construção dinâmica emergente de práticas sociais, formações discursivas e arranjos tecnológicos. Esta abordagem genealógica permite superar as “aporias da soberania vestfaliana” criticadas por Brown (2014), ao estabelecer um diálogo com o terreno teórico fértil aberto pelos estudos pós-estruturalistas e abordagens críticas das Relações Internacionais.
O enquadramento metodológico aqui proposto apoia-se na “genealogia conceptual” da teoria política identificada por Prokhovnik (2007) — com o traçado da história de uma ideia e das suas transformações epistemológicas. Este método demonstra particular valor para o diálogo com o debate permanente da revista sobre a relação entre conceitos políticos e as suas manifestações históricas. Mediante esta perspetiva, avaliam-se quatro momentos pivot na trajetória conceptual da soberania, cada um representando estas “ruturas” no fundamento epistemológico segundo Foucault (1977).
Deste modo, a exposição teórica desenrola-se em quatro atos conceptuais sequenciais. Na fase inicial analisa-se a fundação absolutista em Bodin e Hobbes, onde a soberania surge como antídoto necessário para a crise político-teológica. Num movimento subsequente examina-se a relocação radical da soberania por Rousseau para o povo, dinamizador do “paradoxo da soberania democrática” denominado por Honig (2007). Num terceiro momento estuda-se a viragem sociológica de Weber, mediante a transformação da soberania de questão normativa em problema de autoridade empírica e dominação burocrática. Na etapa final explora-se a dupla desconstrução por Foucault e Anderson, com a revelação respetiva dos mecanismos biopolíticos da soberania e dos seus fundamentos imaginados.
Através do mapeamento destas transformações conceptuais, o presente esboço constrói a “genealogia crítica” proposta por Connolly (2004), oferecendo um novo enquadramento para os debates contemporâneos sobre a soberania num mundo globalizado. Mais do que anunciar o seu desaparecimento, a análise acompanha as migrações conceptuais do termo, forjando assim os instrumentos teóricos necessários para compreender a sua presença persistente — ainda que profundamente transmutada — na vida política do século XXI.
- A Fundação Absolutista: Soberania como Ordem
1.1. O Poder Perpétuo e Indivisível de Bodin
A obra de Jean Bodin, Les Six Livres de la République (1576), aparece como resposta imediata ao colapso da ordem política durante as Guerras de Religião francesas. Perante o conflito fratricida entre católicos e huguenotes, Bodin formula a soberania como “poder absoluto e perpétuo sobre os cidadãos e súbditos”. Esta definição revolucionária procurava instituir um princípio de autoridade superior às facões religiosas, apto a garantir a unidade política. A «absolutosidade bodiniana» manifesta-se devido a quatro atributos fundamentais — indivisibilidade enquanto recusa de qualquer partilha de poder, perpetuidade transcendendo a pessoa física do governante, absolutismo como posição supralegal face às leis humanas e universalidade com aplicação uniforme sobre todo o território. Esta construção teórica representava a tentativa de forjar um árbitro final capaz de superar a fragmentação confessional mediante um poder unificador.
1.2. O Leviatã de Hobbes e o Soberano Secular
Thomas Hobbes radicaliza o argumento bodiniano por meio de uma fundamentação secular e materialista. No seu Leviatã (1651), a soberania deriva de um cálculo racional de autopreservação, afastando-se, assim, do mandato divino. Ao partir de uma antropologia profundamente pessimista caracterizado pelo estado de natureza como “guerra de todos contra todos”, Hobbes concebe o pacto social como alienação total dos direitos naturais em favor de um soberano artificial. Este soberano artificial — o Leviatã — personifica a comunidade política e detém autoridade incontestável, constituída como a única barreira eficaz contra o regresso ao caos primordial. A originalidade hobbesiana evidencia-se na secularização completa da soberania — deixa de constituir um direito divino dos reis para se transformar numa construção humana necessária e asseguradora da segurança coletiva.
1.3. O Paradoxo Central
O modelo absolutista encerra uma contradição insanável — como controlar um soberano incontestável? Esta aporia exprime-se na tensão entre a omnipotência jurídica do soberano e os limites transcendentes da lei divina e natural em Bodin, e na impossibilidade prática de responsabilizar o Leviatã hobbesiano, não signatário do contrato social. O preço da ordem absoluta exterioriza a impossibilidade de controlar o poder, criando o risco permanente do protetor se transfigurar em tirano. Este paradoxo permaneceria como desafio central para a teoria política posterior.
- A Mudança Revolucionária: Soberania como Legitimidade Popular
2.1. A Relocação do Soberano
Jean-Jacques Rousseau opera uma rutura epistemológica no Do Contrato Social (1762), mediante o deslizamento do locus da soberania do monarca para o corpo político coletivo. A soberania cessa de ser direito hereditário do príncipe para se tornar atributo inalienável do povo unificado pela “vontade geral” (volonté générale). Esta transição — do pacto de sujeição hobbesiano para o pacto de associação rousseauniano — representa a fundação teórica da soberania popular e da democracia moderna. A legitimidade desloca‑se da autoridade tradicional ou do medo hobbesiano, para emanar da participação coletiva na formação da vontade soberana.
2.2. As Características da Vontade Geral
A vontade geral distingue-se por quatro atributos fundamentais — a inalienabilidade, inibidora de qualquer delegação ou representação; a indivisibilidade, expressão da unidade do corpo político; a imprescritibilidade, persistente com a própria comunidade; e a infalibilidade orientada, sempre direcionada para o bem comum, mesmo na ausência de formulação explícita. Esta conceção determina o exercício direto da soberania pelo povo reunido em assembleia, com a consequente rejeição de formas de representação política que alienem a liberdade dos cidadãos.
2.3. O Paradoxo Gerativo
Rousseau gera um novo problema conceptual — como operacionalizar a vontade geral? A dificuldade em distinguir entre a “vontade geral” orientada para o interesse comum e a “vontade de todos” somando interesses particulares cria um vazio interpretativo perigoso. A famosa fórmula “ser forçado a ser livre” indica a tensão insolúvel entre autonomia individual e soberania coletiva, abrindo espaço para interpretações autoritárias com vanguardas ou maiorias monopolizadoras do conhecimento da verdadeira vontade geral. Este paradoxo antecipa os dilemas das democracias modernas e os riscos da “tirania da maioria”.
- A Viragem Sociológica: Soberania como Autoridade Efetiva
3.1. Do Normativo para o Empírico
Max Weber promove uma revolução metodológica ao deslocar a análise da soberania do campo da filosofia política para o terreno da sociologia compreensiva. A questão fundamental transmuta-se de “quem deve deter o poder?” para “quem detém efetivamente o poder e por razões de obediência dos dominados?”. Esta transição — do dever-se normativo para o ser empírico — permite analisar a soberania como facto social, independentemente da sua justificação filosófica.
3.2. O Monopólio da Força Legítima
A conceção weberiana do Estado, assente no “monopólio do uso legítimo da força física” sobre um território, redefine radicalmente a compreensão da soberania. A legitimidade transcende o estatuto de princípio abstrato para assumir a forma de uma crença social partilhada, fundamental para o exercício da dominação. Weber estabelece uma tipologia de três formas puras de legitimidade, especificadamente: a tradicional, com fundamento no costume imemorial; a carismática, sustentada pela devoção a um líder excecional; e a racional-legal, baseada na crença na legalidade das normas instituídas.
3.3. A Burocracia como Ferramenta
Para Weber, a soberania moderna materializa-se sob a forma do aparato burocrático racional-legal. A burocracia não funciona como mero instrumento administrativo, antes constitui o esqueleto do Estado soberano, com características de hierarquia funcional, competência técnica, procedimentos estandardizados e separação entre o funcionário e os meios de administração. Contudo, esta racionalização técnica concebe o paradoxo da “jaula de aço” — a mesma burocracia que garante eficiência e impessoalidade acaba por criar uma forma de dominação impessoal com potencial para esvaziar a ação política substantiva e, consequentemente, ameaçar as liberdades individuais.
- A Desconstrução: Soberania Desmascarada
4.1. Foucault: Do Poder Jurídico à Biopolítica
Michel Foucault desmonta a conceção jurídica tradicional da soberania com base em duas operações críticas vitais: a recusa da “hipótese repressiva” como redução do poder soberano ao direito de “fazer morrer ou deixar viver”; e a revelação da biopolítica enquanto tecnologia de poder voltada para “fazer viver ou deixar morrer”, com vista à administração da vida biológica das populações.
A soberania transforma-se assim de princípio jurídico em mecanismo de gestão calculista dos processos indispensáveis — saúde, reprodução, mortalidade, higiene — para se reconfigurar como governo dos corpos e gestão da vida.
4.2. Anderson: Os Fundamentos Imaginados da Soberania
Benedict Anderson desnaturaliza a base territorial do Estado soberano ao apresentar a nação sob a forma de uma comunidade imaginada. Esta conceptualização inovadora assenta em três pilares fundamentais: a natureza imaginada da nação, decorrente do desconhecimento recíproco entre a maioria dos seus membros; o seu carácter limitado, determinado por fronteiras finitas; e a sua soberania, resultante do declínio das monarquias de direito divino. O mesmo autor identifica além disso os mecanismos culturais com função propulsora desta imaginação coletiva: a economia de impressão, responsável pela padronização de línguas vernáculas e criação de campos de comunicação unificados; o romance e o jornal, com a sua capacidade de estruturar uma temporalidade homogénea e vazia; e o censório, gerador de mapas administrativos anteriores à própria consciência nacional.
4.3. Síntese da Crítica
Foucault e Anderson desmontam a soberania por intermédio de eixos complementares: Foucault ataca os seus mecanismos internos ao demonstrar como a soberania jurídica cede lugar a tecnologias biopolíticas de gestão da vida; Anderson desmonta o seu sujeito externo ao revelar a nação — fundamento do Estado soberano — como uma construção cultural e não uma realidade natural.
Em conjunto, mostram a soberania não representa um dado metafísico, melhor resulta de práticas discursivas, tecnologias de poder e processos de imaginação coletiva. Esta dupla desconstrução abre caminho para repensar a soberania para além do Estado-nação, ao preparar o terreno para a análise das reconfigurações contemporâneas na era da globalização.
Conclusão: A Trajetória Conceptual e a sua Pertinência Atual
A jornada genealógica aqui traçada assinala a soberania longe de ser um conceito estático, assumindo-se antes como um “palimpsesto teórico“ nos termos de Balibar (2004) — um conceito em contínua reescrita, onde permanecem vestígios das suas inscrições anteriores. Do poder absoluto de Bodin às comunidades imaginadas de Anderson, a soberania atravessou um processo de espessamento teórico. Esta acumulação de camadas de significado impossibilita qualquer definição simples, mas confere à sua utilidade analítica uma densidade singular.
Esta trajetória conceptual desdobra implicações profundas para o enquadramento teórico dos atuais desafios políticos. A transformação digital da soberania, por exemplo, transcende os limites analíticos do quadro conceptual hobbesiano. Estudos recentes sobre “soberania digital” (DeNardis, 2020; Svensson, 2023) demonstram como o governo das infraestruturas digitais integra modalidades biopolíticas de gestão e processos de imaginação comunitária teorizados por Foucault e Anderson. De forma análoga, os debates sobre a soberania europeia (Beck, 2018; Nicolaïdis, 2019) reconfiguram a tensão weberiana entre autoridade burocrática e legitimidade popular de matriz rousseauniana, já identificada na presente genealogia.
A análise aponta três linhas férteis para investigação futura, mormente:
- A primeira examina a “soberania das plataformas” — concretamente, a necessidade de conceptualizar o exercício de poderes quase-soberanos por plataformas digitais via mecanismos de governação algorítmica e extração de dados.
- A segunda estuda a relação entre soberania e o “poder administrativo” eleito por Somek (2019) no contexto da governação global.
- A terceira investiga o potencial de uma “soberania pluralizada”, segundo Williams (2020), para responder a desafios transnacionais como as alterações climáticas e crises pandémicas.
A genealogia proposta afasta-se da conclusão sobre uma eventual obsolescência da soberania, propondo antes a noção de uma migração conceptual. A tese do “fim da soberania” (Ohmae, 1995; Guehenno, 1999) perde força perante a evidência da adaptação das suas formas conceptuais a novas realidades políticas. Os contributos de teóricos modernos como Mbembe (2019) e Brown (2019) sustentam esta perspetiva, ao demonstrarem que, apesar das transformações nas suas manifestações, a urgência teórica da soberania permanece inalterada.
Em síntese, perceber o passado da soberania mantém-se crucial para teorizar o seu presente e futuro. As camadas conceptuais escavadas — absolutista, popular, sociológica, biopolítica, imaginária, entre outras — continuam a informar os arranjos políticos contemporâneos, mesmo perante a emergência de novos componentes. Possivelmente, na arquitetura internacional assimétrica do século XXI, a verdadeira soberania reside menos no poder de ignorar os constrangimentos e mais na perícia para os gerir estrategicamente; assenta, outrossim, menos numa independência solitária e mais na construção hábil de redes de interdependência.
Bibliografia
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* Mestre em Economia (ISEG), Mestrando em Supply Chain Management (MIT) e antigo Docente Universitário



