Por: William Vieira
A Costa do Marfim recebeu o seu nome dos exploradores portugueses no século XV, em alusão ao intenso comércio de marfim resultante da abundância de elefantes na região. Este vínculo simbólico marca o início das conexões históricas entre Cabo Verde e o território marfinense, uma relação que se fortaleceria ao longo dos séculos.
Motivado por curiosidade investigativa sobre o desporto e a diáspora cabo-verdiana pelo mundo, deparei-me com diversos elementos que comprovam uma profunda e enraizada ligação entre Cabo Verde e a Costa do Marfim. Trata-se de uma presença marcada pela integração e pelo contributo nas áreas da economia, política, artes e desporto, e por uma identidade cabo-verdiana que floresceu em solo marfinense.
O suporte de fontes credíveis foi essencial. Destaco, por exemplo, o diplomata Raúl Jorge Vera-Cruz Barbosa, embaixador de Cabo Verde no Senegal entre 2001 e 2010, cuja missão também abrangia a Guiné-Bissau, Guiné-Conacri e outros países da África Ocidental, incluindo a Costa do Marfim. Igualmente relevante foi o testemunho de um técnico superior da Embaixada de Portugal em Abidjan, Carlos Fernandes, cabo-verdiano de origem, e fundamental no apoio associativo às caravanas desportivas na região.
A investigação foi enriquecida com recortes de jornais e, sobretudo, pelo artigo académico de Jean-Baptiste Tavares, Histoire de l’immigration capverdienne en Côte d’Ivoire, publicado em 2015 pela Universidade de Massachusetts. É importante sublinhar que esta comunidade permanece subexplorada, tanto em estudos científicos como na falta de relevância atribuída por parte dos meios de comunicação social cabo-verdiana.
Segundo o estudo publicado pela Bridgewater State University, o primeiro marco histórico remonta ao período colonial (séculos XVI a XVIII), quando a Diocese de Cabo Verde, criada em 1533 como a primeira da África Ocidental, possuía jurisdição religiosa e administrativa que se estendia do rio Gâmbia ao rio Sassandra, região situada na atual Costa do Marfim. Essa interligação deixou marcas toponímicas, linguísticas e culturais, como evidencia o nome da cidade portuária de San Pedro, tradicional centro de comércio marítimo.
Na mesma linhagem, as cidades de Sassandra e Fresco. A primeira – Sassandra – outrora denominada Santo André, fundada por portugueses e mais tarde administrada por britânicos e franceses, destacando-se na exportação de madeira. Seguidamente, a cidade de Fresco, cujo nome remete diretamente à língua portuguesa, teve origem em explorações do século XV.
A instalação de feitorias portuguesas em Bassam, San Pedro, Fresco e Sassandra, associada à presença do Bispado de Cabo Verde, reforça o papel do arquipélago como centro do catolicismo na África Ocidental. Segundo o estudo aponta, arquivos do Vaticano podem conter mais documentação sobre essa relação histórica.
Segundo momento histórico: a migração no século XX
O segundo ciclo migratório inicia-se entre 1948 e 1950, com indivíduos cabo-verdianos que, vindos de Dakar, se fixam em Abidjan. Com o tempo, a comunidade cresceu por meio do reagrupamento familiar, casamentos e nascimentos, contabilizando cerca de 400 membros em 1965. Ativos em setores como construção civil, costura, tipografia, calçado e atividades marítimas, mantinham forte coesão social e cultural.
Durante as décadas de 1950 a 1970, essa comunidade reforçou sua identidade, embora a partir dos anos 70 muitos migraram novamente, desta vez para a Europa, Estados Unidos ou de regresso a Cabo Verde.
Ainda assim, no mesmo período, os cabo-verdianos desempenharam papéis relevantes na política e diplomacia africana. Destaca-se aqui a influência sobre o presidente Félix Houphouët-Boigny, fundador do PDCI (Parti Démocratique de la Côte d’Ivoire) e figura-chave na independência da Costa do Marfim. Reza a história que Boigny teve um filho com uma cabo-verdiana, criando vinculo, não só politico mas também afetivo com a nossa diáspora naquele país. Como aliado do PAIGC, Boigny apoiou as lutas de libertação da Guiné-Bissau e Cabo Verde, sendo figura importante no processo de unidade e luta e na nossa consequente independência.
Desporto: o destino trágico de um filho da diáspora
A ligação migratória entre Cabo Verde e a Costa do Marfim também teve reflexos na área desportiva. Assim como ocorreu em Portugal, França, Suécia, Argentina ou Países Baixos, surgiram nomes cabo-verdianos que se destacaram no desporto. Entre eles, Max Brito, nascido a 8 de abril de 1968 em Abidjan, com raizes cabo-verdianas.
Ainda jovem, emigrou com a família para França, onde se estabeleceu em Biscarrosse. Lá, cresceu e começou a jogar rugby num clube da 3ª divisão. Em 1995, Max representou a Costa do Marfim na sua estreia e única participação numa Copa do Mundo de Rugby, realizada na África do Sul, palco simbólico de reconciliação nacional sob liderança de Nelson Mandela, retratado no filme Invictus.
Max jogou contra a Escócia e a França, mas foi no jogo frente à seleção de Tonga que sofreu o trágico acidente que marcaria sua vida. Numa jogada de “ruck”, os jogadores se agruparam, e ao fim da ação Max permaneceu imóvel no chão. A lesão cervical foi grave, e, apesar dos esforços médicos, ficou tetraplégico aos 27 anos.
Num gesto de solidariedade desportiva, várias seleções e entidades custearam seu tratamento. A World Rugby concedeu-lhe uma indemnização, mas nada foi suficiente para apagar a dor e a frustração expressas por Max em entrevistas ao longo dos anos. Ainda assim, a sua história virou um símbolo global da importância da segurança por parte dos atletas durante o jogo de rugby e do espírito de resiliência na vida.
Max Brito faleceu recentemente, a 19 de dezembro de 2022, aos 54 anos. Tornou-se um exemplo de coragem, deixando um legado que honra 3 pátrias: a Costa do Marfim, que o viu nascer; Cabo Verde, terra de suas raízes; e França, onde viveu e formou-se como homem e atleta.
Que descanse em paz.
Continua…
