A primeira consequência da Bienal MoAC Biss 2025, realizada na Guiné-Bissau, ao longo do mês de Maio, é a elevação da autoestimada dos artistas e da sociedade civil guineense. O inusitado do local do evento, um dos países mais pobres do mundo e considerado como Estado falhado, não foi impedimento para que um grupo de artistas acreditasse que a arte pode ser um balão de oxigénio e uma prova de vida para o mundo.
A manchete no jornal americano New York Times, na sua secção sobre Arte, escreveu: “Um pequeno país da África Ocidental que sonha com grandes eventos artísticos”.

Abdulai Silá
Mas para o escritor e dramaturgo guineense Abdulai Silá, o sonho transformou-se em esperança e depois na prova de que o país não depende dos poderes públicos para realizar eventos culturais de tamanha envergadura. O inusitado da realização de uma bienal de arte num país sem galerias de arte, sem museus, sem bibliotecas nem escolas de arte, acabou por atrair a imprensa mundial, expectante sobre a Bienal MoAC Biss 2025 da Guiné-Bissau.
Durante todo o mês de Maio, dezenas de artistas e escritores, nacionais e estrangeiros (incluindo o cabo-verdiano César Scofield Cardoso), e dezenas de actividades culturais, nomeadamente, espectáculos musicais, dança e de artes performativas, teatro, exposições, ateliês de escrita criativa, lançamento de livros, foram acontecendo um pouco por todo o país.
“Houve o receio de que pudesse haver alguma intervenção dos políticos e que estes mandassem evacuar os recintos, como já aconteceu anteriormente. Felizmente, isso não se confirmou”, diz Abdulai Sila ao telefone para o A NAÇÃO, a partir Bissau.
Mas a Bienal de que agora tanto se fala não surge isolada. Ela é o resultado de uma mostra de artes realizada há dois anos na capital do país, que permitiu projectar e sonhar com esta MoAC Biss 2025. E no momento de fazer o balanço e com o alívio da não interferência da classe política e do governo – “que para além de não se terem feito representar, não se pronunciaram” -, o destaque do escritor e activista guineense vai para o facto de tudo ter sido feito pelo cidadão comum.
À parte o que considera como uma “importante e significativa mudança de paradigma”, o mais conhecido escritor guineense refere outro aspecto que é “o impacto na auto-estima do cidadão guineense comum”.
Durante a Bienal, adianta o nosso entrevistado, “mais do que nunca, os jovens que vivem nos bairros foram aos centros culturais e houve uma participação forte do cidadão comum. Isso, aliado à riqueza das ‘performances’, dos actores, foi uma coisa extremamente útil, no sentido de, definitivamente, nos libertarmos de certas preocupações e de certos preconceitos”.
Com isto, a ideia de que sem o Estado não se pode fazer nada ou que o país estava condenado ao fracasso, para Abdulai Sila, cai por terra. “Assim como as percepções criadas nesse sentido, nos últimos tempos.”
Contexto ‘atípico’
Hoje, para o escritor, fica provado que, “quando quisermos, podemos fazer uma bienal num contexto completamente atípico, a começar pela sua sede, que era em tempos uma carpintaria e que foi totalmente aproveitada, decorada”.
Para muitos, incluindo, Sila, esta bienal marca uma viragem na vida cultural do país e não só. “Já que não é possível alterar a situação, dialogando com certas forças, então vamos fazer a mudança que se pretende à nossa maneira, de uma forma autónoma. A sociedade civil, a intelectualidade guineense, agora tem o exemplo de que é possível fazermos algo sem a interferência do poder. Parece banal para quem vive noutros contextos, mas para nós aqui, não. Esta é a maior conquista que podemos destacar da Bienal”.
Desta vez, as “forças do mal”, como Abdulai se lhes refere, não intervieram. “A repressão tem sido tão grande que estamos sempre a recear a repetição de actos de barbaridade, como vem acontecendo. Como aconteceu durante o lançamento do livro do Manecas Santos, no Centro Cultural Português, em que o ‘Todo Poderoso’ invadiu o acto e usurpou o momento, fazendo o seu discurso de autoelogio e autopropaganda, para espanto das pessoas presentes. Isto depois de ter mandado fechar a porta”, lembra.
A Bienal inaugural MoAC Biss, que decorreu ao longo de todo o mês de Maio, em Bissau, teve como lema a Mandjuandadi, palavra do crioulo que se refere à amizade, primeiro entre pessoas da mesma idade, mas também alargada a outros círculos de proximidade afectiva. Ou seja, de Identidades em Liberdade.
A Bienal apresentou uma gama diversificada de expressões artísticas, incluindo artes visuais, artes cénicas, literatura, música e discussões sobre políticas públicas, com o objetivo de fomentar o diálogo e a reflexão sobre identidade e liberdade.
Entre os curadores (para artes plásticas e visuais) esteve o artista visual Nú Barreto, que vive em Paris e conhecido por um trabalho que aborda a injustiça social. Assim como Welket Bungué (artes cénicas), um artista multidisciplinar com foco em teatro e cinema, Zaida Pereira (literatura), Karyna Gomes (música) e António Spencer Embaló (políticas públicas).
O evento serviu, ente outras coisas, como uma plataforma para artistas nacionais e internacionais se envolverem com o público e contribuírem para o discurso cultural da Guiné-Bissau. O artista visual cabo-verdiano César Schofield participou na Bienal com uma instalação sobre a pesca excessiva e a poluição dos mares.
O Kriol da Guiné-Bissau como Património Cultural
A promoção e valorização do crioulo foi outro dos aspectos que a Bienal de Bissau pretendeu destacar. E no dia 31, no acto de encerramento, foi apresentado publicamente o Grupo de Trabalho para a Elaboração da Proposta de Elevação do Kriol ao Estatuto de Património Cultural da Guiné-Bissau, à semelhança do que já acontece em Cabo Verde.
Trata-se de uma ‘task force’ criada pela Fundação MoACBiss, a designação da Bienal de Bissau. Na sua página do Facebook, Abdulai Sila teve a preocupação de reunir várias considerações feitas à volta do crioulo, por especialistas, feitas ainda durante os anos oitenta. Para ele, este é um desafio a assumir de forma consciente e responsável. Mas, também em relação ao português, em que defende a coexistência das duas línguas, num mesmo plano. “Chegámos a um ponto em que as pessoas não conseguem falar português, mas estão a dar aulas em português… é preciso mudar alguma coisa. É preciso que, depois de 12 anos de escolaridade saibam, pelo menos, comunicar, o que não acontece actualmente. E ao mesmo tempo, é preciso combater o obscurantismo. Ou seja, promovendo a educação, dando as ferramentas de que necessitam, cumprir com a sua missão e educar.”
A assunção das responsabilidades dos cidadãos, diz Abdulai Sila, passa pela elevação dos critérios. “Por exemplo, no parlamento temos cerca de 60% dos deputados que são analfabetos; no governo temos ministros analfabetos, isto não é mais aceitável. Estes desafios têm de ser colocados na agenda da discussão nacional.”
E conclui: “Como parte do longo e tortuoso processo de descolonização mental, a nossa língua precisa de ter um nome próprio: Guineense. Como património cultural, transmissor de Cultura por excelência. E para que se ponha fim aos catastróficos “desastres pedagógicos”.
Joaquim Arena
