No livro A Hora dos Predadores, o escritor e analista Giulano da Empoli mostra como a aliança das multinacionais das novas tecnologias com o poder autocrático de chefes de Estado pode colocar em perigo a democracia liberal e os seus ganhos conquistados nas últimas décadas. Os novos ‘predadores’, assim chamados, governam recorrendo ao caos e a uma intervenção directa na vida das sociedades. Violam leis e são contra qualquer tipo de regulação do mercado e das suas áreas de intervenção.
Com a chegada das redes sociais e a explosão da informação disponível online, criou-se uma bolha de factos, acontecimentos, notícias, análises, comentários, que pareciam ir remeter o trabalho do jornalista e dos analistas profissionais, para um canto. Se em tempos, aguardava-se pela opinião dos grandes pensadores, filósofos, sociólogos ou mesmo escritores, a importância dessa opinião sobre a actualidade, hoje, parece bem mais reduzida e relativizada. No entanto, há livros e autores que vão conseguindo ‘furar’ essa barreira da irrelevância e tentar com que o mundo consiga entender um pouco melhor aquilo que se passa à nossa volta. É o caso do escritor suíço-italiano Giuliano da Ampoli e do seu mais recente livro A Hora dos Predadores (Gradiva, Lisboa, 2025).
A complexidade do mundo actual e a velocidade a que as coisas se sucedem têm o condão de levar o cidadão comum a ficar perdido e a afastar-se daquilo que ele não entende. E isso não é pouco. Aqui estamos a falar do impacto das novas tecnologias de informação no dia a dia das pessoas e na vida política de qualquer país, em qualquer parte do mundo. Já que tudo aquilo que vai acontecendo, seja nos Estados Unidos, seja na Europa, acaba por afectar o resto do mundo. Incluindo Cabo Verde.
Giuliano da Ampoli ficou célebre, há poucos anos, depois de publicar o romance realista O Mago do Kremlin, pouco tempo antes da invasão da Ucrânia pela Rússia. Foi um sucesso retumbante, sobretudo em França, onde vendeu mais de 800 mil cópias, tornando o escritor um fenómeno literário.
Este antigo conselheiro do presidente do Conselho de Itália, Matheus Renzi, regressa este ano com A Hora dos Predadores. E estes novos predadores, para o escritor, são as figuras que estão em destaque, nos media internacionais: Donald Trump, Vladimir Putine, o príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed Bin Salman, Nayb Bukele, o presidente salvadorenho, entre outros. Este último, Bukele, em destaque após a sua aliança com o presidente americano, nas deportações em massa de imigrantes ilegais. A melhor maneira para se compreender o que significam estas personagens, não é através de textos ou livros publicados nas últimas décadas. Segundo Giuliano, é mais fácil fazer um paralelismo com figuras mais antigas, como escreve o historiador romano Suetonius, outros clássicos latinos ou mesmo da Renascença.
Nelas se podem encontrar exemplos destas personagens que não têm limites nem regras e que impõem as suas vontades pela lei da força. E isto é o que provoca a confusão junto dos seus adversários e das pessoas, em geral. Para Giuliano, em determinados aspectos o mundo actual vive momentos não muito diferentes, politicamente, daquele de Machiavelli, nos séculos XV e XVI.
Algumas destas figuras, para o escritor, são comparáveis aos Borgias (sendo Cesare Borgia, 1475-1507, o modelo do príncipe de Machiavelli), que viveram num período de muita violência e caos. Um momento de guerra que envolveu as repúblicas italianas e que resultou da chegada da artilharia pesada, dos canhões, das bolas de ferro, trazida pelos franceses. Esta artilharia, esta nova tecnologia, era capaz de destruir as fortalezas em volta das cidades italianas.
Novas tecnologias e autocracia
E aqui, Giuliano chama a atenção para uma tecnologia nova que cria o caos e dá vantagem ao agressor. O escritor faz uma analogia com a era digital, com o mundo em que vivemos, com os ciberataques, as campanhas de desinformação e fake news, nas redes sociais, que também dão a primazia e a iniciativa ao agressor. É o digital como a nova ‘artilharia’, criadora do caos. E os novos gurus, as personagens que dominam o digital, são completamente diferentes dos tecnocratas, dos juristas e de outras figuras mais ou menos convencionais que vinham gerindo os assuntos do Estado e que fazem parte do espectro social. O mais grave, revela o escritor, é quando estes novos detentores do ‘novo fogo’, os jovens que dominam as TIC, deixam de estar em sintonia com os valores democráticos que até então eram seguidos.

Donald Trump
“Estas personagens simpáticas que surgiram há uns 25, 30 anos, com blusões ou camisolas com capuz, calçando ténis, os Zuckerberg das TIC, todos eles jovens e progressistas, depois de um período em que davam a entender que seguiam as regras do jogo da democracia liberal tradicional. Achava-se que só estavam mesmo interessados em fazer negócios. Hoje revelam a sua verdadeira face que é encarnarem um verdadeiro projecto de mudanças políticas e sociais, no mundo. Um novo projecto de governança.” Para Giuliano, trata-se de algo que se destina, numa última fase, a substituir as instituições e a política tradicional.
Por outro lado, para conseguir os seus fins estes detentores das novas tecnologias vão-se aliar não com as velhas elites políticas tradicionais da esquerda ou da direita, que vêm governando os países ocidentais, desde há décadas, mas sim com personagens bem mais disruptivas, mais extremistas, esses mesmos ‘predadores’, com Donald Trump e Putin à cabeça.
Estas figuras, defende o escritor, também querem afastar a democracia liberal, pois não lidam bem com todas as suas regras, as suas leis, os princípios, os valores, os processos legais, os direitos humanos. E aqui encontram um espaço comum de existência com os políticos radicais.
Giuliano da Empoli socorre-se da História para mais uma analogia, evocando a chegada dos Conquistadores ao México dos aztecas, no século XVI, durante o reinado de Monteczuma. “Este terá olhado para os 250 espanhóis que vinham de desembarcar: gente estranha, com capacete e armadura de metal, montados nuns animais estranhos, trazendo pela mão uns tubos de onde saía fogo, não se sabendo bem se eram humanos ou se eram deuses… Monteczuma ficou confuso. Liderava na época o maior império das Américas e os seus 100 mil homens teriam dizimado facilmente os Conquistadores.”
Aqui, explica Giuliano, os aztecas são como a actual classe política ocidental que viu surgir estas personagens jovens e ficou fascinada com este mundo digital. Diziam-lhes que estes jovens não deveriam ser importunados – sobretudo não começar regular tudo o que criavam – e que representavam o progresso e o futuro, mesmo se os velhos políticos tradicionais não percebessem nada do que se estava a passar. Após a tomada do poder e da aliança com o presidente Donald Trump, quer os oligarcas das TIC, quer o próprio presidente americano, identificaram a Europa como o seu principal inimigo. O Velho Continente é o único espaço a impor-lhes regras, assim como a aplicar, através dos tribunais, pesadas multas, como foi o caso da META, detentora da rede social Facebook, por violação das regras e por mau uso de dados dos usuários.
O caos como arma
Por outro lado, este escritor e antigo conselheiro político, refere o caos que antigamente era uma arma utilizada pelas facções da periferia, pelos insurgentes, para imporem os seus ideais, desde os anarquistas, a outros grupos radicais (a propósito, publicou um livro intitulado Os Engenheiros do Caos).
“O que acontece é que hoje o caos ganhou o centro e é a arma principal dos dominadores, uma hegemonia do caos. E esse caos não convive bem com regras, com o primado da lei, como vemos em casos sucessivos nos Estados Unidos. O diagnóstico sombrio de Giuliano traz outros elementos de análise. Refere como nos últimos 45, 50 anos, praticamente todos os candidatos a presidente e a vice-presidente do partido democrata, nos EUA, eram juristas, advogados.
“Preocuparam-se mais com os direitos das minorias, como um ‘partido de advogados’, esquecendo completamente o resto da população (maioria silenciosa). E daqui saiu um ambiente legalista, formal, bastante favorável ao ‘wokismo’, em especial durante os dois mandatos de Barack Obama. Tornou-se moda, a ponto de ter sido adoptado pelas empresas das TIC e pelo mundo digital. Mas foi logo liquidado em nome da ‘energia masculina’, em especial por Zuckerberg, e que culmina na chegada ao poder de Trump, inimigo declarado do ‘wokismo’”.
O escritor recorre novamente à História, desta vez ao dramaturgo inglês William Shakespeare, para explicar a primeira regra dos ‘predadores’: “A primeira regra de todo o insurgente está no texto da peça Henry VI, deste autor, em que alguém diz, ‘para começar, matemos todos os advogados’.”
No que respeita à Inteligência Artificial (IA), o escritor não diz ser contra, adiantando que seria “ridículo, hoje, ser contra a IA”. No entanto, na sua opinião, “a sua gestão e governança é catastrófica”. A propósito evoca o antigo conselheiro de Joe Biden para os Negócios Estrangeiros, que afirmou, na hora da saída da administração democrata, que no momento estariam em curso três ou quatro ‘projectos Manhattan’ (nome do projecto que levou à produção da bomba atómica, em 1945), a ser desenvolvidos nos EUA, com enorme potencial para revolucionar a Humanidade, tal como teve o Manhattan, na época. A grande diferença é que o Projecto Manhattan esteve sempre sob o controlo do Estado, enquanto estes novos estão nas mãos e pessoas como Elon Musk e os senhores da Google.

Nayb Bukele
No caso do presidente salvadorenho, Nayb Bukele, Giuliano fala de outro ‘recurso’, que ele designa por ‘milagre’ da intervenção directa. Esta é levada a cabo pelo chefe de Estado, que suspende as leis e a própria constituição do país, para intervir num determinado aspecto. O exemplo são os cerca de 80 mil membros dos gangues de El Salvador, que fizeram do país o mais violento do mundo, até há uns anos.
Depois de eleito, Bukele mandou prender todas pessoas que ostentavam tatuagens referentes a gangues. Naturalmente sem qualquer processo judicial ou garantia de defesa. Para isso, estabeleceu no país o estado de emergência, que renovou 36 vezes, e está em vigor há mais de dois anos. O resultado foi a queda da taxa da criminalidade, para níveis iguais ao Canadá.
Com os elementos dos gangues presos, a população passou a poder circular em paz. É o ‘milagre’ da intervenção autocrática, que suspende direitos fundamentais, mas produz resultados imediatos, resolvendo a situação. Naturalmente com a aprovação da população. Nas últimas eleições presidenciais, Bukele venceu com uma maioria de mais de 85 por cento.
Joaquim Arena
