Por Américo Medina, Consultor em Aerospace
A Agência de Aviação Civil (AAC) publicou recentemente o seu Boletim Estatístico das Reclamações 2024, revelando um total de 688 reclamações apresentadas pelos consumidores ao longo do ano, das quais 95,9% referem-se a serviços prestados pelas transportadoras aéreas. Embora o documento traga uma compilação valiosa de dados, peca por aquilo que omite: nenhuma explicação, nenhuma consequência, nenhuma correção é referida!
É estranho que uma entidade reguladora apresente um relatório quantitativo sem tirar conclusões qualitativas ou informar os utentes e mercado na sua generalidade, sobre que medidas corretivas foram adotadas, se é que alguma o foi – Dados sem ação/analise funcionam como “ruído” estatístico, apenas! Mais ainda: tempos médios de resposta às queixas são omitidos, não se conhece qualquer sanção, coima, plano de ação corretiva, nem metas impostas aos operadores para os próximos períodos operacionais (verão e inverno IATA), como exigem os manuais de boas práticas internacionais de supervisão!
TACV e TICV: A Liderança Negativa Reiterada
Os dados confirmam o que qualquer passageiro frequente já percebeu: a transportadora estatal TACV lidera com folga o ranking de reclamações (350 casos, 50,8%), seguida da TICV (245 reclamações, 35,6%). Juntas, respondem por mais de 86% das queixas contra companhias aéreas no país. O número desassossega, sobretudo para empresas que beneficiam, direta ou indiretamente, de recursos públicos, concessões exclusivas ou proteção institucional!
As principais queixas — cancelamentos (41%), atrasos (11,7%), reembolsos (9,8%) e recusas de embarque (7,7%) — representam mais de 70% dos casos. Isto revela graves falhas operacionais, má gestão de frota e pessoal, e deficiências no planeamento. São precisamente estas categorias que o Regulamento (CE) n.º 261/2004 da União Europeia considera mais sensíveis, exigindo compensação e resposta célere, sendo que os cancelamentos e atrasos objetos de tratamento muito diferenciado a nível global — o que parece não ser o caso em Cabo Verde!
Aeroportos & Handling: O Desconforto no Solo
Mesmo os serviços em terra não escapam à crítica. Foram registadas reclamações relativas aos aeroportos, relativas ao serviço de assistência em escala, com origem em falhas do operador aeroportuário ou do handling, sendo que o “Aeroporto Nelson Mandela” na Praia, lidera em insatisfação em ambos os segmentos.
Ora, onde estão os indicadores de desempenho exigidos por normas internacionais como os Service Level Agreements (SLA) para PMR (Pessoas com Mobilidade Reduzida), tempo médio de espera em filas (segurança, fronteira, checkin, recolha de bagagens) ou qualidade de informação ao passageiro(?); acerca de dados sobre o número de auditorias internas não há nada – A agência não informa!
Um Regulador Deve Ser Mais Que Um Arquivo de Queixas
O papel da AAC vai muito além da mera receção e sistematização de reclamações. Conforme definido pela ICAO (Manual on Certification of Air Operators – Doc 8335) pelos princípios da regulação europeia, FAA e outras agências, ou instituições de supervisão compete ao regulador:
- Fiscalizar e sancionar práticas reincidentes e lesivas ao consumidor;
- Publicar tempos médios de resposta às queixas e prazos para resolução;
- Impor metas corretivas e preventivas, com indicadores públicos de desempenho;
- Comunicar planos de ação e evolução das medidas adotadas, promovendo accountability;
- Educar o consumidor e os operadores com relatórios interpretativos e recomendações claras.
Nada disso se vê no relatório da AAC, apenas se constata…(!); o aumento de 9,7% nas reclamações em 2024 face a 2023 (mais 61 casos) é registado como mero facto, sem qualquer leitura crítica, sem autocrítica institucional, sem compromisso público de melhoria.
Um “Silêncio” que Custa Caro
É legítimo perguntar: quantas destas reclamações redundaram em processos de contraordenação(?); Quantas resultaram em coimas(?); Houve reincidências(?); Há operadores sob monitorização reforçada(?); Foram exigidas medidas corretivas(?); Estabeleceram-se metas para redução de atrasos ou melhoria do índice de satisfação do passageiro como mandam as normas e as boas práticas…(?) – Os utentes não têm “dignidade” suficiente para serem informados, parece!
A resposta da AAC a estas perguntas o longo dos anos tem sido a omissão, o culto da opacidade selectiva para favorecer narrativas governamentais e eleitoralista! Mas o impacto dessas omissões é tudo menos neutro pois, ele perpetua o desrespeito ao passageiro, vai desincentivar a concorrência saudável lá onde ela venha a aparecer ( creio que não deve tardar) e mina a confiança do público no sistema de transporte aéreo.
E o Governo?
O Govern, celebra a promessa de certificação da LACV até setembro de 2025” e a aplicação de Obrigações de Serviço Público (OSP), como se isso resolvesse uma década de ineficiência crónica…(!?) – Ignora que sem plano de viabilidade publicado, sem transparência, sem responsabilização, nada muda.
O Grupo de Apoio Orçamental (GAO) foi claro, apontando que os riscos orçamentais das empresas públicas são reais, insistindo na premência das reformas estruturais, promoção da concorrência e governação eficiente no setor dos transportes…., again and again!
O governo responde com o otimismo gasto e as habituais frases feitas sobre “janelas de financiamento”, “confiança dos parceiros” e “novas oportunidades” quando, todos sabemos que a realidade é outra: Cabo Verde tem um setor aéreo politicamente capturado, economicamente disfuncional e operacionalmente mais vulnerável que nunca!
Num país insular, com fraca conectividade marítima e forte dependência do transporte aéreo, tudo isso conjugado, está a contribuir para o colapso de um pilar da nossa mobilidade nacional e internacional – É que no fim do dia, nós todos vamos precisar e merecemos mais que um dashboard: merecemos todos mais ação, mais rigor, mais transparência e mais responsabilização!
A AAC, terá que saber que só publicar dados estatísticos “castrados” já não chega
