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Independência de Cabo Verde: dádiva, conquista ou discurso?

Por: Milton Monteiro*

Em seu discurso na sessão solene do 49.º aniversário do 25 de Abril, o presidente Marcelo Rebelo de Sousa afirmou: “O 25 de Abril começou por existir por causa da descolonização”. 

Por isso, enquanto eu ouvia o magnífico discurso que afirmava que a independência de Cabo Verde começou por existir por causa do 25 de Abril, fiquei imaginando se não seria melhor que o senhor Marcelo, presente na Assembleia Nacional, fizesse o discurso da bancada parlamentar, ou permanecesse em Cabo Verde para estudar História com alguns democratas, ou ainda pedisse desculpas pela sua afirmação sobre as lutas pela independência.

Até aqui do Brasil dá para saber que a Revolução dos Cravos teve suas raízes no coração da luta anticolonial africana, que minou o regime português por dentro e tornou inevitável o seu fim. No seu livro “Na Diplomacia, o Traçado Todo da Vida”, o chanceler Mário Gibson Barboza – considerado o pai da abertura da política externa brasileira para a África Negra – relata a conversa tida com o major Melo Antunes, figura central da Revolução dos Cravos, sobre o momento em que este mudou seu ponto de vista em relação ao governo português:

“Mudei precisamente lá [referindo-se à Guiné]. Aquilo era uma guerra dura e violenta, mas ao mesmo tempo com intervalos longos, muito calor, mosquitos e bastante tempo ocioso. Conversávamos extensamente com os prisioneiros, muitos deles bem preparados, alguns com formação superior na União Soviética. Acima de tudo, estavam visceralmente envolvidos na libertação do seu povo. Nessas conversas com os prisioneiros, eu e outros oficiais portugueses acabamos por compreender a posição deles e, assim, começamos a divergir do governo português. Em seguida, passamos a conspirar para derrubá-lo.”

Gibson conclui: “Instrutiva ironia da História. O governo português manda seus oficiais e soldados para a África, num esforço cruento, exaustivo e dispendioso, para manter suas colônias. Mas esses mesmos combatentes passam a dar razão ao inimigo e, mais que isso, voltam as armas contra o seu próprio governo.”

Ano passado, enquanto Portugal reconheceu oficialmente o papel de Amílcar Cabral e da luta anticolonial na libertação do jugo fascista, integrando o nome de Cabral às comemorações dos 50 anos da Revolução dos Cravos, o MpD boicotou a comemoração do centenário de Cabral. 

Enquanto Maria Inácia Rezola, comissária executiva para as comemorações do 50.º aniversário do 25 de Abril, reconheceu que “as lutas de libertação desenvolvidas em África contra o então império português foram determinantes para a queda da ditadura do Estado Novo. Amílcar Cabral é uma figura essencial nesse contexto, pelo papel de liderança que desempenhou e pelo legado que perdura até hoje, com uma dimensão internacional muito significativa”, o então líder parlamentar, ao comentar o chumbo, preferiu evocar a Revolução dos Cravos em vez de aproveitar a chance de reconhecer Cabral como a maior figura cabo-verdiana de todos os tempos.

Agora mesmo, diante da ampla desaprovação do discurso por parte dos cidadãos, ele foi às redes sociais para solidarizar-se com seu homólogo, afirmando que este foi “sereno e honesto com a nossa história”. 

Não por acaso, o início oficial das comemorações dos 50 anos da independência de Cabo Verde também foi marcado para o dia 25 de abril de 2025, e mais uma vez reaparece a sombra.

Ou seja, o discurso proferido na sessão solene não foi inédito nem um caso isolado. Ele reflete uma relação de desfalque histórico ainda não resolvido por muitos do MpD. 

Tudo isso em relação à memória da independência teve gênese no partidarismo, negacionismo, aniquilacionismo e revisionismo lá de trás. Em um país onde a História não é ensinada, os jovens desconhecem, por exemplo, outros motivos que levaram à substituição do hino nacional, à mudança da bandeira e à instituição do ‘Dia da Liberdade’, em 13 de janeiro. Também não sabem que a estátua de Diogo Gomes, associada ao passado colonial, foi recolocada com cerimônia oficial, na presença do então presidente português Mário Soares.

Falando em Soares, pelo que sabemos, ele não concedeu a independência da Guiné e de Cabo Verde ao encontrar-se com Aristides Pereira logo após o 25 de Abril. Tampouco o comandante Pedro Pires a recebeu nas negociações realizadas em Londres e Argel. 

Ao liderar os difíceis diálogos com o novo governo português, Pires mesmo sabia que o general Spínola, então presidente de Portugal, era contrário à independência das colônias, apesar de defender no “Portugal e o Futuro” que a resolução dos conflitos era política, e não militar.

“As negociações com os portugueses foram árduas” – deixou claro o “Comandante Pedro Pires em Memórias da luta anticolonial em Guiné-Bissau e da construção da República de Cabo Verde” (p. 121). E reforça: “Se não fosse o PAIGC [não os capitães de Abril, Spínola, Soares, nem a UDC, a UPIC ou o MpD], Cabo Verde não seria livre” (p. 131). Guiné-Bissau proclamou unilateralmente a sua independência em 1973, reconhecida por mais de 85 países antes mesmo do 25 de Abril. E foi com esse espírito de conquista e soberania que se iniciaram as negociações também para a independência de Cabo Verde.

Junto com o líder da bancada da oposição, que evitou a habitual pancadaria parlamentar que tantas vezes presenciamos naquela casa, o Presidente da Assembleia Nacional mandou bem no seu discurso, minimizando, ainda que parcialmente, os danos do seu próprio líder parlamentar. Ao afirmar que “a independência não foi uma dádiva”, demonstrou ter feito o dever de casa e lido o livro do comandante Pedro Pires: “a independência foi uma conquista árdua e não uma dádiva ‘democrática’” p. 141).

Num momento solene como a celebração do meio século da Independência, o que se espera é grandeza, memória e gratidão, reconhecimento do caminho percorrido, dos sacrifícios feitos e dos nomes que moldaram a nossa liberdade, honrando aqueles que deram a vida para que hoje possamos falar livremente num parlamento cabo-verdiano.

Ninguém duvida que a Revolução dos Cravos teve seu quinhão de importância na fase final da independência de Cabo Verde. Porém, quem esteve à frente da luta foram os cabo-verdianos e guineenses, guiados sob a liderança visionária, ainda não superada por nenhum deputado, de Amílcar Cabral, a quem foi negada a menção devida no referido discurso.

A única referência, fria e desprovida de consideração e gratidão  – “eram três as forças políticas no terreno: o PAIGC de Amílcar Cabral […]” – contrasta com os elogios calorosos dirigidos a Carlos Veiga, que estava sentado exatamente atrás do comandante Pedro Pires. A este, maior figura viva da independência, restou apenas ouvir a redução dos primeiros 15 anos do incansável esforço a uma ditadura, pela qual se exige, pela segunda vez, um pedido de desculpas.

Quando criança, eu ouvia no Fogo: “dia de benefício é véspera da ingratidão”, um ditado que o comandante, filho de Djarfogu, talvez tenha lembrado naquele discurso desprovido, que também equiparou UDC e UPIC ao PAIGC; falou da existência da liberdade e democracia antes do 13 de janeiro; incorreu no anacronismo de querer democracia antes da independência; ignorou completamente as particularidades do contexto do partido único; desconsiderou que foi justamente nesse período que o país lançou suas bases a partir do zero; reservou elogios gloriosos apenas ao MpD e esqueceu que esse partido não surgiu do nada.

“Um povo que não conhece sua História está fadado a repeti-la” (Edmund Burke).

*cabo-verdiano radicado no Brasil, é professor na Universidade Federal do Tocantins.

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