Por: João Serra*
Há mais de três meses que estou à espera da emissão, por parte da DGPOG do Ministério das Finanças, de uma simples declaração do tempo de serviço relativo à minha passagem por esse departamento, onde exerci funções governativas. Não há nada em falta, na medida em que anexei cópias de Boletim Oficial com as respetivas datas de nomeação e exoneração. Mesmo assim, já lá fui uma dezena de vezes e a resposta tem sido ou que se está à espera de despacho superior, ou de assinatura.
Trata-se de um caso pessoal, e eu tenho a possibilidade e, sobretudo, a coragem de o denunciar. Mas, há vários outros, de pessoas anónimas, ou nem por isso, que, por diversas razões, não os denunciam. Então, pergunto: porquê que eu e os outros cidadãos somos obrigados a passar por este calvário, quando o Governo vem alardeando uma Administração Pública (AP) cada vez mais moderna, eficaz e célere ao serviço dos cabo-verdianos?
Embora se tenham registado avanços importantes, como a digitalização de alguns serviços, a AP em Cabo Verde transformouse, ao longo de décadas, num intricado labirinto kafkiano de formalidades, carimbos (assinaturas) e prazos aparentemente infinitos, alimentado por uma “cultura de quintal” em que o amiguismo, o clientelismo e o favor pessoal pesam mais do que o mérito e a eficiência. O descaso e a multiplicação de exigências, muitas vezes desnecessárias ou redundantes, contribuem para a sensação de que a burocracia existe para dificultar em vez de facilitar. Na verdade, a complexidade e a lentidão dos processos burocráticos têm um custo elevado para os cidadãos – cujos projetos de vida e atividades económicas ficam atrasados ou mesmo inviabilizados – e para o país como um todo, que perde competitividade e potencial de crescimento.
A “cultura de quintal” na nossa AP é, em grande medida, herdeira das práticas da administração colonial portuguesa, marcada por hierarquias rígidas e forte centralização de decisões. No momento da Independência Nacional, esperavase uma revisão radical desses procedimentos, que tornasse o serviço público mais ágil e transparente. Porém, em vez de se simplificar, a máquina pública herdou e preservou rotinas obsoletas. Com o decorrer do tempo, ela tornouse cada vez mais inchada e consumidora dos parcos recursos orçamentais, enquanto as várias reformas administrativas anunciadas, visando reduzir significativamente a burocracia, permanecem, em grande parte, no papel.
Um dos aspetos mais nefastos dessa cultura de ineficiência é a prevalência de nomeações para cargos de chefia baseadas em critérios de afinidade política, amiguismo ou laços familiares. Essa prática nepotista, que ignora o mérito e a competência técnica, perpetua uma lógica de “quintal” em que as relações pessoais e a lealdade partidária se sobrepõem ao profissionalismo e à capacidade de gestão. As consequências são evidentes: chefias despreparadas para liderar equipas e implementar políticas eficazes, perpetuando a má gestão e o mau desempenho. Esse sistema clientelista mina a meritocracia, desmotiva os funcionários competentes e mantém um círculo vicioso de qualidade deficiente nos serviços públicos.
Por outro lado, convém destacar outro dos grandes males da AP: a sua captura partidária. Não há como manter a motivação dos funcionários quando, à sua volta, se cruzam chefes incompetentes e assistem a colegas injustamente penalizados ou beneficiados em função da sua sensibilidade político-partidária. Quando os partidos aproveitam cada mudança governativa para alocar uma vasta rede de “amigos”, militantes ou simpatizantes na estrutura do Estado, demonstram profundo desrespeito pela AP. Pior ainda, impedem o progresso institucional e desmotivam aqueles que se esforçam unicamente por desempenhar bem a sua função em benefício de toda a sociedade.
Assim, embora, em teoria, o Estado se apresente como garante de processos céleres e transparentes, na prática reinam procedimentos arcaicos e subjetivos, que consomem tempo e recursos, tanto da administração como dos utentes, impactando negativamente a qualidade dos serviços prestados e minando a confiança dos cidadãos nas instituições. A ineficiência endémica manifestase na morosidade exasperante de processos que deveriam ser simples e céleres. Obter um documento, licença ou aprovação transformase frequentemente numa saga que exige paciência infinita, múltiplas deslocações e, por vezes, o recurso a expedientes menos lícitos que penalizam cidadãos e empresas.
Para o cidadão, as consequências traduzem-se em perda de tempo e de recursos financeiros, desgaste psicológico e sensação de impotência perante um sistema que parece improdutivo. Quando, por exemplo, a emissão de um documento fundamental se converte numa odisseia, a confiança nas instituições democráticas erodese, tornando a participação cívica e o sentido de pertença à nação cada vez mais frágeis. Efetivamente, a imposição de exigências redundantes – designadamente carimbos em documentos já validados e pedidos de anexos que já constam nos sistemas eletrónicos – traduzse, por vezes, em horas de espera, gastos imprevistos de transporte e oportunidades de negócio perdidas.
Os impactos económicos são igualmente avassaladores. A criação de uma sociedade – procedimento que deveria demorar até 15 dias úteis – prolongase em média por 60 dias, conforme o inquérito de janeiro de 2025 da Associação Comercial de Cabo Verde (ACCV), pág. 18. Esse lapso compromete a geração de receitas, a contratação de pessoal e atrasa pagamentos a fornecedores, reduzindo a competitividade das pequenas e médias empresas. Investidores estrangeiros, cientes da imprevisibilidade dos prazos, preferem destinos mais céleres, o que poderá explicar a queda de 12 % no investimento direto estrangeiro entre 2022 e 2024, segundo o Banco de Cabo Verde.
Romper com essa cultura enraizada exige vontade política firme e a implementação de reformas estruturais ambiciosas. É imperativo investir na qualificação dos recursos humanos da AP, através de processos de recrutamento transparentes e baseados no mérito, e de programas de formação contínua que garantam a atualização de competências. A modernização e a digitalização dos processos administrativos são igualmente urgentes, visando simplificar procedimentos, reduzir a burocracia e aumentar a eficiência. A adoção de critérios rigorosos e transparentes na nomeação de cargos de chefia, privilegiando a competência técnica e a experiência profissional, é fundamental para promover uma gestão pública mais eficaz e meritocrática. Adicionalmente, é necessário rever a baixa remuneração e introduzir flexibilidade nos mecanismos de recompensa e progressão, penalização de comportamentos negligentes e valorização genuína dos muitos funcionários públicos que, diariamente, dignificam o serviço público com competência e dedicação.
Urge transformar a AP num verdadeiro motor de progresso, assente na competência, na transparência e na orientação para o serviço público, abandonando as práticas burocráticas insanas e clientelistas que tanto prejudicam o país e o seu futuro.
Praia, 28 de junho de 2025
*Doutorado em Economia
