Por: Américo Medina, Consultor em Aerospace
O Governo de Cabo Verde acaba de autorizar mais uma garantia soberana para a TACV – a terceira no mesmo contrato de leasing – no valor de 5,25 milhões de dólares, para sustentar a permanência em operação de um Boeing 737-8 MAX, supostamente “peça central” na estratégia de relançamento da companhia aérea nacional. Esta decisão, embora envolta em retórica desenvolvimentista, é na verdade sintomática da ausência de um plano realista, sustentável e tecnicamente coerente para o setor aéreo nacional.
A nova garantia insere-se na cadeia de compromissos financeiros que o Estado vem assumindo em nome da TACV, cuja performance comercial, operacional e financeira permanece opaca e encalhada num monumental pantanal – A empresa não publica relatórios de contas, nem métricas objetivas de performance, indicadores nenhuns! Desconhecem-se dados atualizados sobre load factor, yield médio por rota, cashflow operacional ou resultados líquidos e, ainda assim, continua a beneficiar de garantias públicas, empacotadas como parte de um “Interim Business Plan” sem escrutínio, sem transparência e sem resultados tangíveis!
Uma Empresa Sustentada no Vazio e na Dívida
A insistência no leasing de uma aeronave moderna, como o 737 MAX, seria compreensível num contexto de crescimento da rede de rotas, expansão da oferta, aumento da quota de mercado e consolidação comercial! Mas, a realidade da TACV é inversa: a empresa perdeu slots estratégicos em vários aeroportos europeus e americanos ( Norte e Sul), cancelou rotas de forma errática, opera voos com regularidade inconsistente e viu o seu market share encolher frente à concorrência que ocupa os espaços vazios com maior eficiência, pontualidade e a cada dia em mais aeroportos do país, substituindo a TACV com 0,0 custos para o erário público!
Companhias com os mais diversos BM’s desde Legacy’s, LCCs, Charter’s de todas as latitudes ( só faltam modelos de negócio em base a balões de ar quente) têm aproveitado a retração da TACV para se consolidarem em rotas que outrora eram “domínio” da transportadora cabo-verdiana. A incapacidade da TACV de se financiar no mercado, de executar um plano de retoma credível ou de reestruturar sua operação de forma autónoma demonstra que, longe de ser uma “peça central”, esta aeronave tornou-se um símbolo da dependência crónica de garantias públicas.
Um Vetor Estratégico.., para o desequilíbrio!
O Governo justifica esta nova injeção com base no PEDS II, que identifica a conectividade aérea como vetor estratégico para o crescimento económico. Contudo, há uma dissonância evidente entre esse objetivo e os meios escolhidos – Em vez de fomentar um ecossistema de transporte aéreo competitivo, com regras claras, uma regulação eficaz e eficiente, com estímulo a ligações interilhas e regionais, a aposta tem recaído exclusivamente numa companhia insolvente, um modelo de negócio esgotado, com histórico de má gestão e sem accountability!
É particularmente grave que os recursos mobilizados com apoio de parceiros internacionais para melhorar os transportes interilhas estejam, na prática e à socapa, a reforçar a presença da TACV em mercados internacionais, de uma forma encapuzada via a LACV! Trata-se de uma perversão do espírito dos acordos de financiamento e de uma distorção das prioridades: enquanto ilhas como Maio e Brava permanecem isoladas, o Tesouro garante as faturas de leasing para que um avião voe entre Lisboa e Praia a meio gás!
Os Alertas Ignorados: GAO, FMI e Banco Mundial
Como muitos já referiram, não é de hoje que os parceiros internacionais vêm alertando para os riscos fiscais associados à manutenção da TACV nos moldes atuais. O Grupo de Apoio Orçamental (GAO) foi explícito: o financiamento indireto da empresa representa um passivo contingente que distorce as contas públicas; o Banco Mundial e o FMI também identificaram a transportadora como fator de risco para a consolidação orçamental e a confiança dos investidores. Ora, persistir neste modelo equivale a empurrar a conta para futuras gerações, enquanto se prolonga a agonia de uma empresa que opera como se fosse pública, mas sem as obrigações de transparência do setor estatal…(!) – Tudo feito como se de um boteco d’Ponta d’ Praia se tratasse!
TACV versus TAP: o que separa as duas trajetórias?
Tendo em conta essa nossa relação “umbilical” e conjuntura, a tentação de comparar a TAP e a TACV é inevitável, sobretudo à luz dos recentes anúncios de privatização de ambas… – Mas as diferenças são abismais ( caro amigo analista, sorry)
A TAP, apesar das críticas, foi submetida a um plano de reestruturação supervisionado pela Comissão Europeia, com metas de desempenho, redução de frota, racionalização de rotas e corte de custos; conseguiu a TAP publicar lucros operacionais consecutivos, aumentou o número de passageiros transportados, modernizou a sua frota e prepara-se agora para um processo de privatização competitivo, com múltiplos interessados, incluindo grandes grupos internacionais… – embora o Sr Montenegro queira ganhar em todo o terreno e com as garantias que pede…(?) vamos a ver ! Mas, a privatização parcial da TAP ( eu adoraria que fosse acima dos 55%) apesar de representar um custo irrecuperável para os contribuintes, é um mal necessário e estrategicamente equilibrado, dada a posição da companhia na matriz económica e geopolítica do país! Em contraste, a experiência da TACV representa um fracasso de política pública, marcado por decisões improvisadas, desrespeito por regulamentos, das leis do país e uma total ausência de prestação de contas. O paralelo entre os dois casos mostra que, mesmo quando há prejuízo, o que distingue um processo racional de um desastroso é a qualidade da decisão pública e o respeito pelas regras do jogo institucional, da força das instituições no teatro das operações!
Notem, repito(!), a TACV nem sequer apresenta relatórios financeiros auditados; as decisões operacionais são politizadas, os administradores continuam a nomear-se por filiação partidária e a empresa sobrevive de garantias e subsídios que não refletem viabilidade, mas sim conveniência política – Se a TAP foi obrigada a emagrecer para voltar ao mercado, a TACV continua a engordar no colo do nosso Tesouro e mal consegue sair do chão!
Voar em Círculos
O novo aval de 5,25 milhões de dólares não é uma boa notícia ( ao contrário daquela sobre o Mister Músculo Tripulante) é apenas mais uma volta no ciclo vicioso de endividamento, improviso e fuga ao escrutínio. A TACV não precisa de mais aviões garantidos pelo Estado, precisa sim de gestão profissional, transparência, foco nas rotas essenciais e uma redefinição do seu papel no ecossistema do transporte aéreo nacional. Enquanto isso não acontecer, continuaremos a voar em círculos, com o Tesouro a pagar não somente o combustível mas os “consumíveis” e “comestíveis” para os comensais de sempre!
