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Convidados

Um estudo, nenhum rumo: o concurso da TACV, o espelho da desorientação estratégica

Por: Américo Medina*

A Transportes Aéreos de Cabo Verde (TACV) acaba de anunciar,  com visível esforço de mediatização, um novo “concurso internacional” para contratar consultores que elaborem uma estratégia de reposicionamento da companhia entre 2026 e 2031. Num primeiro olhar, sugere tratar-se de uma medida de gestão responsável — Afinal, planear é sempre melhor que improvisar! Mas basta um olhar mais atento para perceber que este anúncio é mais uma manobra de distração de uma companhia à deriva, usada como biombo político por um governo sem rumo no setor da aviação.

O concurso como sintoma, não solução

A primeira pergunta óbvia é: por que razão se anuncia um plano para 2026–2031 se a empresa deveria ter sido privatizada em 2024 ou, no mais tardar, em 2025, conforme os compromissos oficiais reiteradamente assumidos pelo próprio Governo? Ao invés disso, encomendam agora um terceiro plano estratégico, depois de dois anteriores falhados e um histórico de promessas incumpridas. É a institucionalização da procrastinação, vendida como planeamento, como convém em vésperas do debate sobre o Estado da Nação, onde o governo sabe que já não tem margem para novos floreios sobre a TACV – E com eleições à vista, é preciso criar a ilusão de que ainda há uma bússola. Este concurso surge como um instrumento de sobrevida política, concebido para alimentar manchetes, preencher tempos de antena e dar argumentos à propaganda governamental, que precisa desesperadamente de sinais de ação, mesmo que vazios, num setor que só tem acumulado fracassos!

Planeamento estratégico com os pés fora do chão

Segundo o comunicado oficial, o estudo servirá para reposicionar a TACV num mercado mais competitivo pós-COVID – Ora, a pandemia terminou há mais de dois anos; companhias aéreas em todo o mundo, das legacy às low-cost, não só voltaram ao mercado com força, como reestruturaram redes, ajustaram frotas, absorveram choques financeiros e reposicionaram as suas marcas. A TACV-Governo, por decisão política, ficou pregada no chão durante dois anos, perdeu slots valiosos em Lisboa e Paris, aeroportos americanos, cancelou rotas, entregou o mercado regional e internacional de bandeja e…, agora quer “analisar o mercado”?

Não estamos perante a prometida visão inovadora de 2016, nem perante uma reestruturação bem conseguida(!) – Estamos perante uma recauchutagem de promessas antigas e falhadas, embaladas de novo com linguagem técnica para encobrir o vazio operacional e o fracasso da governação do setor. E pior ainda(!): os custos operacionais das rotas internacionais atualmente exploradas pela TACV (sem retorno claro, sem escala e sem viabilidade comprovada) estão a ser financiados com dinheiro dos parceiros internacionais, verbas essas que deveriam estar a garantir ligações regulares entre as ilhas, assegurar a coesão territorial e permitir mobilidade básica aos cidadãos cabo-verdianos. O que se está a fazer, de forma silenciosa, é uma deslocação política de fundos de ajuda externa, traindo o espírito dos acordos e agravando o desequilíbrio do setor.

Mais inquietante é o facto de que , o TdR não aborda a questão da solvência, é omisso sobre qualquer mecanismo para viabilizar financeiramente a execução das futuras recomendações e está desalinhado com o contexto regional e global; ignora por completo os compromissos assumidos no âmbito do Mercado Único Africano de Transporte Aéreo (SAATM), a evolução tecnológica (digitalização, inteligência de dados, integração GDS/NDC), e as exigências de sustentabilidade e práticas ESG; também é omisso sobre o imperativo da integração com os grandes centros de tráfego.

Contradições gritantes

O concurso menciona a importância da TACV no quadro do Plano Estratégico de Desenvolvimento Sustentável (PEDS), em particular para o suposto “hub do Sal”. Mas como é possível pensar em hub com uma companhia sem frota própria, sem escala, sem voos intercontinentais regulares e sem conectividade interilhas funcional?! A EasyJet, Transavia e outras operam livremente e com sucesso em Cabo Verde, enquanto a “companhia de bandeira” se limita a operar duas ou três ligações com baixa frequência e desempenho errático.

A alegação de que o plano vai “avaliar externalidades” e “impacto económico e social” também cai por terra quando se considera e se sabe que o maior impacto da TACV hoje é fiscal e não económico, que consome recursos públicos sem retorno mensurável. Convenhamos, a companhia não é vetor de desenvolvimento, é um passivo contingente que distorce as finanças públicas, como já alertaram o FMI, o GAO e o próprio Banco Mundial.

Com a indústria a mover-se de forma intensa e a nível global, a TACV-Governo continua sonâmbula! Neste exato momento, operadores internacionais com frota moderna, experiência de mercado e modelos comerciais sólidos estão a ocupar os espaços que a TACV abandonou e, e estão a fazê-lo sem necessidade de subsídios do Estado, sem favores políticos e sem concursos de “visão estratégica” – Voam para lá onde há procura, onde há viabilidade e, estão a consolidar-se em Cabo Verde, não por mérito do Governo, mas apesar dele, como prova a aterragem da EasyJet nas rotas de Lisboa–Praia e Lisboa–Mindelo… : com 0,0 custos para o erário público, repito!

Governança ausente e captura institucional

O anúncio deste concurso é, sobretudo, revelador da ausência de governação responsável ao longo desses nove dolorosos (9!) anos. Num cenário institucional sério, qualquer tentativa de reestruturação da TACV passaria no mínimo por:

Auditorias independentes às contas e contratos;

● Publicação de relatórios trimestrais de desempenho;

● Revisão dos objetivos estratégicos com envolvimento do regulador e da sociedade civil;

● Definição clara do papel da TACV: transportadora internacional, regional, interilhas, cargo ou apenas marca simbólica?

● Estabelecimento de prazos vinculativos para privatização ou liquidação, com critérios de desempenho objetivos.

Nada disto foi pensado, feito ou tentado, nunca se conseguiu definir metas, nem cronogramas, tampouco  critérios de avaliação e agora, somos “surpreendidos” com um concurso sacado dessa gasta cartola mágica, onde se pede consultores com “visão inovadora”, uma expressão vaga que serve apenas para mascarar a falta de rumo.

O voo da ilusão continua

É evidente que o voo da ilusão continua, a gestão da TACV-Governo tornou-se uma metáfora perfeita do que não se deve fazer com empresas públicas em setores estratégicos: politização, improviso, opacidade e uso propagandístico de decisões irrelevantes! Este novo concurso internacional não é o início de uma solução, é sim, a continuidade da ilusão, projetada para ocupar manchetes, calar críticos e alimentar as encenações no parlamento.

Enquanto o país se entretém com anúncios, estudos e “visões estratégicas”, o mercado organiza-se sem a TACV. E quando finalmente a realidade se impuser, como sempre acontece na aviação, perceberemos que não foi por falta de planos, mas por falta de coragem para decidir, e por incapacidade crónica de resistir à tentação de alimentar os “boys” com linguiças, jobs e consultorias que apenas servem fins eleitorais e arranjos políticos

*Consultor em Aerospace

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