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Estado da Nação 2025 – ou o estado a que isto chegou

Por: João Serra*

No ciclo eleitoral de 2016, o então partido da oposição prometia uma mudança radical. Falava-se numa rutura com o passado, na edificação de um país próspero, diversificado e inclusivo, com um sistema de saúde e de educação de excelência, um motor de desenvolvimento que ultrapassaria a dependência do turismo e das remessas de emigrantes, e com Cabo Verde a tornar-se num “hub” marítimo, aéreo e digital de referência. O slogan “Cabo Verde tem solução” ecoava como um mantra de redenção. Tudo isto, embrulhado num discurso de modernidade, de transparência e de despartidarização da Administração Pública (AP), seduziu o eleitorado e abriu caminho para uma alternância democrática legítima. Porém, a distância entre a promessa e a execução revela-se abissal.

Com efeito, volvidos mais de nove anos sobre a tomada de posse do Governo suportado pelo MpD, o balanço que se impõe é de desalento e descrença. A economia cabo-verdiana continua extremamente dependente do turismo e, por isso, muito vulnerável a choques externos, como os provocados pela pandemia de COVID-19 e pela guerra na Ucrânia. Embora estes eventos sejam significativos, não podem servir de desculpa perene para a ausência de estratégias de resiliência e diversificação efetivas, prometidas muito antes destes abalos. O propalado “milagre económico”, consubstanciado numa taxa média anual de crescimento de 7%, não se materializou; de 2016 a 2024, Cabo Verde cresceu a uma taxa média de apenas 3,33% ao ano. A dívida pública cresceu a um ritmo preocupante, não obstante o “rebasing” do PIB, comprometendo a sustentabilidade orçamental. O custo de vida disparou e o poder de compra das famílias erodiu-se significativamente, sem que este tivesse sido integralmente reposto e, muito menos, aumentado, como prometido.

Os grandes projetos estruturantes parecem, em muitos casos, miragens adiadas ou redimensionadas para algo muito mais modesto do que o inicialmente alardeado. Neste particular, entre as promessas não cumpridas, destacam-se a construção do aeroporto internacional de Santo Antão, os prometidos aeroportos internacionais no Fogo e no Maio, bem como o Hospital Nacional e o programa de água e saneamento nos bairros periféricos da capital. Estas infraestruturas, que deveriam ter um impacto significativo na qualidade de vida dos cabo-verdianos, permanecem apenas no papel.

As oportunidades de emprego anunciadas, que deveriam proporcionar a criação de um total de 45.000 empregos dignos, esbarram num tecido empresarial débil, incapaz de absorver a mão-de-obra qualificada que o país forma, tendo sido criados, entre 2016 e 2024, uns míseros 4.429 empregos líquidos. Enquanto o Governo se vangloria do ligeiro decréscimo do desemprego, muitos jovens licenciados ou com formação profissional deparam-se com estágios não remunerados, empregos precários ou, sobretudo, com a emigração em massa.

Outro exemplo flagrante desta dissonância entre promessa e realidade situa-se no setor dos transportes. A trajetória da TACV, transformada em Cabo Verde Airlines e marcada por sucessivos planos de reestruturação, privatizações fracassadas e intervenções estatais onerosas, constitui um estudo de caso de gestão errática e de promessas incumpridas. O sonho de um “hub” aéreo pujante, capaz de conectar continentes, acabou por ficar suspenso entre a retórica e a pista de aterragem, provocando um impacto financeiro devastador para os contribuintes. Ademais, os transportes marítimos entre as ilhas tornaram-se um obstáculo ainda maior à coesão social e ao desenvolvimento do país, afetando sobremaneira a mobilidade dos cidadãos, a economia, o turismo e o comércio.

No setor da saúde, os hospitais continuam a carecer de equipamentos adequados e de pessoal especializado, mantendo listas de espera intermináveis e dependência de evacuações médicas para fora do país. As modernizações anunciadas têm caráter pontual e cosmético, sem sustentar uma estratégia de longo prazo que garanta acesso equitativo e sustentável aos cuidados. Na educação, os indicadores oficias podem sugerir melhorias em certas áreas, mas a qualidade do ensino tem vindo a degradar-se, refletindo-se em défices de aprendizagem e na frustração de famílias e professores.

Ao contrário do prometido, a partidarização e o nepotismo na AP agravaram-se consideravelmente, tornando-se regra o compadrio, a criação de intermediários improdutivos e até certo parasitismo em favor de interesses políticos e pessoais, demonstrando quase total desprezo pela meritocracia, o descaso em relação à sociedade civil e gerando um ambiente de medo e de censura velada.

De igual modo, não se cumpriu a promessa de maior transparência na gestão da coisa pública, com o cenário atual a revelar um quadro muito mais complexo e, por vezes, perturbador, em que a confiança dos cidadãos nas instituições e a transparência na gestão dos recursos públicos têm vindo a declinar de forma acentuada.

Perante este cenário, em que as dificuldades se evidenciam e são sentidas na pele pelos cidadãos, assiste-se a um verdadeiro “martelamento estatístico”, no qual os dados oficiais são manipulados com precisão cirúrgica para favorecer a narrativa oficial. Para tanto, produzem-se indicadores cuja base não é atualizada há cerca de uma década, escolhem-se períodos de comparação ao milímetro e invocam-se rankings internacionais que pouco refletem a realidade do cidadão comum. Ou seja, a estatística – ferramenta fundamental para a análise e o planeamento – é pervertida, transformando-se num instrumento de propaganda na tentativa de criar uma realidade paralela, mais confortável para o poder instituído.

Este “bombardeamento” de dados positivos, muitas vezes sem o devido contraditório ou análise crítica aprofundada nos espaços mediáticos, tem um efeito pernicioso: desacredita as próprias instituições produtoras de estatísticas e fomenta um cinismo generalizado. Quando a narrativa oficial se distancia ostensivamente do sentir popular, o cidadão sente-se não apenas ignorado, mas também, de certa forma, menosprezado na sua capacidade de discernimento. É como se a repetição exaustiva de “verdades” estatísticas fosse suficiente para apagar as dificuldades do dia a dia.

A governação não pode ser um exercício de propaganda permanente, em que a imagem se sobrepõe à substância. O respeito pela inteligência dos cidadãos passa por um diálogo franco, pela admissão das dificuldades e pela apresentação de soluções credíveis e exequíveis, em vez de uma postura de autoelogio constante e de planos megalómanos que raramente saem do papel ou se concretizam de forma mutilada.

Em suma, o Estado da Nação 2025 parece refém de uma visão que oscila entre o delírio de um futuro radiante, constantemente adiado, e a ofensa a uma inteligência coletiva que, apesar de tudo, sabe distinguir o discurso oficial da realidade palpável. Urge um banho de realismo, um compromisso genuíno com a verdade e uma governação que, de facto, coloque os cidadãos e a resolução dos seus problemas concretos no centro das prioridades, e não a manutenção de uma fachada de sucesso a qualquer custo.

Praia, 12 de julho de 2025

*Doutorado em Economia

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