Por: Albertino Ramos
Cinco décadas após a independência, Cabo Verde, grosso modo, ostenta com legítimo orgulho uma democracia estável, paz duradoura e um capital humano que transcende as fronteiras do arquipélago. Todavia, neste marco dos 50 anos, mais do que celebrar a memória, impõe-se uma urgência transformadora.
Não basta recordar a resistência cabo-verdiana — afigura-se imperioso questionar para quem e como se constrói o país hoje. Subsistem assimetrias territoriais brutais: algumas ilhas inteiras vivem à margem da conectividade, do investimento e até da esperança. Adicionalmente, a juventude debate-se com subemprego, emigração forçada e um silêncio institucional que a exclui. E as políticas públicas, por vezes bem-intencionadas, naufragam entre o improviso e a inércia continuísta.
Do ajuste à refundação: uma mudança de paradigma
Refundar estrategicamente não simboliza apena um ajuste técnico, obviamente. Exige reinventar o modelo territorial, reequacionar as finanças públicas, renegociar o contrato intergeracional e ressignificar a própria narrativa nacional.
– Criar uma fiscalidade insular diferenciada, que valorize custos e oportunidades específicos de cada ilha;
– Instituir um “Senado” da Juventude, espaço permanente para co-criação de políticas além de ciclos eleitorais;
– Fundar um Observatório da Memória e Futuro, articulando legado histórico e planeamento simbólico de longo prazo.
Para além da alternância estéril
A alternância democrática — conquista inegável — não produziu até hoje uma visão estratégica partilhada. Cada governo tende, grosso modo, a recomeçar do zero, enquanto o país oscila entre inaugurações efémeras e promessas repetidas.
A refundação requer pactos de Estado suprapartidários em temas estruturantes: segurança hídrica, emancipação juvenil, transporte inter-ilhas, transição energética e justiça territorial. Não podemos ser reféns de ciclos políticos curtos num país que clama por horizontes de décadas.
Geografia como alavanca, não limite
Cabo Verde não se define por coordenadas no Atlântico — trata-se duma ideia em construção, alimentada por uma diáspora criativa, por juventudes inquietas e por territórios ávidos por protagonismo.
Longe de ser utópica, esta refundação constitui um imperativo vital. Sua origem reside numa interrogação fundadora: como converter um arquipélago de dispersões e diferenças num projeto comum, tangível e partilhado, considerando a complexidade sistémica do mundo contemporâneo?
Exige-se, pois, a capacidade de decidir na vizinhança da incerteza — arte que requer humildade epistémica (reconhecimento da ignorância), coragem ética (assunção das consequências) e inteligência estratégica (ação propositada, mesmo sem certezas).
