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Há no ar um (mau) cheiro que se vê

Por: Hélder Paz Monteiro

Sou cabo-verdiano, arquiteto e urbanista, vivo e trabalho na cidade da Praia. Escrevo a partir da minha condição profissional, mas também, ou sobretudo, por inadiável dever de consciência, como cidadão. Há anos que vejo acontecer o inaceitável à vista de todos, com a responsabilidade criminosa daqueles a quem cabe gerir, e a cumplicidade negligente daqueles a quem compete fiscalizar. Não nos iludamos. Os cidadãos que assistem, acrítica e passivamente, a este crime ambiental, sanitário e moral, não se podem eximir de responsabilidades. A indiferença, numa sociedade livre e democrática, para além de condenável, torna-nos cúmplices, por inação. Para que quem de direito aja com carácter de urgência, aqui estou a denunciar a situação com um audível BASTA, na expetativa de que a situação mude rapidamente.

Na cidade capital de Cabo Verde, o mar carrega mais do que sal. Leva também, todos os dias, há anos, o que sai dos esgotos de milhares de casas — das casas de todos nós – despejado diretamente, sem qualquer tratamento. E isto, à vista de todos nós. Estamos perante um crime ambiental grave, que importa resolver com a máxima urgência, e cujos autores devem ser responsabilizados.

A cidade da Praia tem uma ETAR, mas é como se não tivesse. O espantoso é que, até à data, nenhuma autoridade (sanitária, ambiental, infraestruturas) se tenha pronunciado a respeito, informando e alertando a população para o facto em si e suas consequências. Entretanto, os praienses continuam a pescar naquela zona, e a banhar-se diariamente na mais movimentada praia de Santiago, mesmo ali ao lado, a Quebra Canela. É como se o problema não existisse. Acresce que, provavelmente por distração, a comunicação social, as associações e/ou os grupos de cidadãos, não noticiam, não comentam, nem denunciam a situação. Ao que parece, “toda a gente” agradece que não se toque no assunto.

Peço desculpas à indiferença geral, e a este irresponsável ‘faz-de-conta’ pelo incómodo da ‘má-notícia’, mas a Estação de Tratamento de Águas Residuais do Palmarejo, que há muito deixou de cumprir a missão inscrita na sua própria designação, ‘tratar’, hoje serve apenas como caixa de passagem dos resíduos, que seguem diretos para o mar. O emissário submarino, que deveria lançar esses efluentes ao largo, está partido há anos. Ninguém avisa, ninguém explica, ninguém repara, provavelmente, ninguém é responsável. É o domínio da irresponsabilidade institucionalizada, e da impunidade assegurada, em que o silêncio grita mais alto do que o cheiro. E assim seguimos, calmos e tranquilos, naquela mansidão de rebanhos, normalizando uma monstruosa anormalidade.

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Paradoxalmente, esta é a capital de um país que vive hoje ancorada no turismo.

Repito, o que está a acontecer é grave do ponto de vista ambiental, sanitário e cívico. Não é apenas uma questão técnica e de saúde pública, o que não é pouco, é também uma questão ética e de qualidade democrática, em que, aqueles que deviam prestar contas, demonstram um profundo desrespeito pelos direitos e pela dignidade dos cidadãos.

Por isso, é urgente que os responsáveis — nacionais, municipais, ambientais — se pronunciem sobre a gravidade do que está a acontecer e ajam em conformidade, e que sejam apurados os responsáveis, sem desculpas nem tibiezas, e que apresentem rapidamente soluções e calendários credíveis para por cobro à atual situação. Que cada cidadão se faça eco desta denúncia, assim como se espera uma atitude ativa por parte do senhor Provedor de Justiça. Não podemos continuar a viver de costas voltadas para aquilo que, todos os dias, suja os nossos dias. 

Julho 2025

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