Por: João Serra*
As estimativas preliminares apontam para que Cabo Verde tenha atingido 4 300 dólares norteamericanos (USD) de Rendimento Nacional Bruto (RNB) per capita em 2024. Com isso, o país ultrapassou, ainda que muito ligeiramente, o limite de 4 280 USD fixado pelo Banco Mundial para os países de rendimento médio-baixo, tendo sido, em consequência, recentemente reclassificado como país de rendimento médio-alto. A notícia foi recebida com entusiasmo oficial e leitura triunfalista. Já o primo mais próximo do RNB per capita, o Produto Interno Bruto (PIB) per capita, foi estimado em cerca de 5 329 USD em 2024. No entanto, por detrás da ascensão estatística escondemse fragilidades estruturais que, se ignoradas, podem tornar esse estatuto pouco mais do que um mito sofisticado.
O mito começa na própria natureza do PIB per capita, que é uma média aritmética que diz pouco sobre a vida concreta dos cidadãos e ainda menos sobre as capacidades reais de desenvolvimento de um país com as caraterísticas de Cabo Verde. Na verdade, esse famoso indicador é uma medida útil para dividir o valor da atividade económica de um país pelo número de habitantes. É uma média, mas não diz nada sobre a distribuição da riqueza. E, como advertiu Angus Deaton, Nobel de Economia, não podemos ignorar a desigualdade apenas porque a média cresce. Um dos melhores exemplos da ilusão causada por esse tipo de médias foi dado pelo renomado poeta e matemático chileno Nicanor Parra: “Há dois pães. Você come dois. Eu, nenhum. Consumo médio: um pão por pessoa.”
Até mesmo do ponto de vista do debate teórico, há consenso de que não basta apenas olhar para o PIB per capita. O foco deve estar nas oportunidades reais que as pessoas têm para viver uma vida plena, e não apenas no nível médio de rendimento do seu conjunto. Nesse espírito, Joseph Stiglitz, também Nobel de Economia, chamou o PIB per capita de indicador “mágico”, capaz de atrair atenções políticas, mas incapaz de captar a distribuição de riqueza, a qualidade de vida ou a sustentabilidade ambiental. Amartya Sen, outro Nobel de Economia, advertiu que o verdadeiro desenvolvimento deve ser medido pelas “capacidades” das pessoas – a liberdade de escolher um modo de vida que valorizem – e não meramente por agregados monetários. Essa visão é crucial para Cabo Verde, onde o desafio não é apenas gerar riqueza, mas garantir que essa riqueza se traduza em melhores capacidades e oportunidades para todos os cidadãos.
Aplicadas ao caso caboverdiano, essas críticas ganham contornos muito específicos. De facto, o recente aumento do rendimento per capita não se traduziu, até ao momento, em melhorias significativas no Índice de Desenvolvimento Humano, onde Cabo Verde permanece na 135.ª posição mundial, nem num aumento consistente do acesso a cuidados de saúde de qualidade, nem em reformas educativas que garantam qualidade de ensino e empregabilidade bem remunerada e sustentável. As infraestruturas, sobretudo rurais, continuam precárias e a diferença entre ilhas e bairros torna-se cada vez mais gritante. Pelo menos, 23,8% do total de jovens entre 15 e os 35 anos encontram-se sem emprego e fora de qualquer estabelecimento de ensino ou formação, o que acentua a negação da igualdade de oportunidades e tratamento, perpetuando ciclos de exclusão social. O coeficiente de Gini – o índice que mede a equidade na distribuição de rendimento de um país – terá aumentado de 42,4 em 2015 (INE) para 50,9 em 2019 (estimativa do World Economics), um nível elevado mesmo segundo padrões africanos, demonstrando que grande parte do rendimento agregado concentra-se em estratos restritos e revelando desigualdade acentuada. Assim, o cidadão médio descrito pelas estatísticas é, na verdade, uma abstração: Mais de metade da população caboverdiana sobrevive com muito menos do que os tais 5 329 USD por ano.
Outro equívoco comum é confundir crescimento do PIB com aumento da capacidade interna de geração de prosperidade. O indicador de rendimento per capita cresceu, sim, mas não necessariamente à custa de uma maior capacidade interna de criação de riqueza. De facto, Cabo Verde depende fortemente de importações de alimentos, combustíveis, máquinas e bens de consumo. Isso faz com que grande parte do que o país produz em valor saia logo de novo do circuito económico nacional. A expansão económica recente foi puxada por fatores externos – principalmente o turismo e as remessas da diáspora – e não por maior capacidade produtiva interna. O turismo de sol e mar, concentrado em Sal e na Boavista e dominado por grandes cadeias estrangeiras “tudo incluído”, gera PIB, mas alimenta principalmente economias externas, com fracos encadeamentos locais e pouco valor retido. Nem os lucros dos hotéis, nem a maior procura no comércio significam necessariamente mais riqueza para os cabo-verdianos, uma vez que, em muitos casos, esses lucros são repatriados para o exterior. As remessas da diáspora, que representam mais de 12 % do PIB, sustentam o consumo de muitas famílias, mas não refletem criação de riqueza dentro do território nacional. São importantes, claro, mas não estruturais. Nesse modelo, o dinheiro chega de fora para dentro e não resulta de cadeias produtivas nacionalmente diversificadas – o que alguns economistas chamam de “economia eternamente financiada de fora”.
Além disso, o próprio salto estatístico de Cabo Verde deveuse a razões pontuais: uma taxa de câmbio euro/dólar favorável (o escudo caboverdiano é indexado ao euro) e uma revisão em baixa de 12,8 % da população residente pelas Nações Unidas, resultado, sobretudo, da emigração. Esses ajustes elevaram artificialmente o RNB per capita sem que houvesse mudança estrutural nas capacidades económicas. Isto significa que, sem qualquer mudança estrutural, uma inversão cambial ou uma nova correção demográfica poderá, no futuro, devolver o país ao grupo anterior, sem que tal implique qualquer decréscimo real do bem-estar dos caboverdianos.
Em suma, o PIB per capita, apesar de útil enquanto régua de comparação internacional, está longe de ser um espelho fiel da realidade socioeconómica caboverdiana. O que a estatística revela é apenas parte da história. A outra parte – desigualdade, fragilidade produtiva, dependência externa – permanece encoberta por números que, à primeira vista, parecem promissores.
É por isso fundamental olhar para além do PIB per capita. Assim, para que o rótulo de “rendimento médio-alto” se traduza num avanço tangível na qualidade de vida das pessoas, será preciso repensar profundamente o modelo económico e investir em capacidades produtivas internas. Neste particular, é urgente que se abracem políticas de diversificação económica, de forma a reduzir a dependência do turismo de sol e praia e fortalecer outros setores como a economia azul, o digital e a indústria, impulsionando o crescimento sustentável e resiliente. Importa também reduzir desigualdades e construir um Estado socialmente inclusivo.
Sem isso, o novo estatuto internacional será apenas isso: um estatuto elegante, mas enganador e possivelmente efémero.
Praia, 26 de julho de 2025
*Doutorado em Economia
