Por: José Vicente Lopes
No “estado da Nação” da semana passada, Cabo Verde foi brindado com o acórdão de um tribunal arbitral a condenar o Estado a indemnizar em mais de 30 milhões de euros a CV Interilhas por um serviço que nos prometeu e não cumpriu, e, mesmo assim, vamos ser nós, contribuintes, por culpa de quem nos governa, a pagar essa pipa de massa à dita companhia por incumprimento de um contrato que já fez correr oceanos de tinta.
E agora que tudo está claro e cristalino, por força do acórdão do tribunal arbitral, não se pode dizer que este não era um negócio fadado a problemas. Desde a primeira hora, este jornal foi dando conta dos vários imbróglios que iam acompanhando e marcando o processo que acabou por culminar na assinatura do contrato de concessão que o Governo, zelosamente, tudo fez para entregar ao grupo ETE, empresa maioritária da CV Interilhas.
Vir saber agora que entre o contrato assinado pela CVI e o Estado e a versão autorizada pelo Conselho de Ministros há discrepâncias, apenas mostra como este país vem sendo governado por amadores, para não lhes chamar outro nome, sem ter que ofender a inteligência alheia.
Um governo com juristas a dar com o pau, sem falar daqueles que à sombra vão engordando das assessorias e consultadorias, pareceres e quejandos, cometer um tamanho erro de palmatória põe-nos a perguntar se este país quer mesmo ser levado a sério. Ainda por cima, qual ironia dos deuses, no ano em que se está a comemorar 50 anos de independência, daí a pergunta também: como pode um Estado lidar com um parceiro capaz de tamanha trapaça? O que fez o Estado quando se deu conta que tinha sido ludibriado, assinando um contrato que não tinha passado pelo Conselho de Ministros? Chamou a polícia? O Ministério Público, foi accionado para repor a legalidade?
Se há um sector onde este governo não acerta uma é o dos transportes. Aqui somam-se, igualmente, os milhões de dólares que fomos também obrigados a pagar aos islandeses da Icelandair antes de se porem a andar de Cabo Verde, sem falar na ‘turpida’ de avales que o Estado já concedeu aos TACV para manter no ar a ilusão de ter uma companhia aérea de bandeira, dinheiro este que – quem quiser que anote no respectivo caderno de apontamentos – nunca haveremos de ver de volta.
Os milhões de euros dados de bandeja à CVI e os milhões de contos enterrados na TACV, tudo somado, dariam para dois ou três MCA, acredito. Se o primeiro MCA levou José Maria Neves, na altura primeiro-ministro, a dizer que Cabo Verde ganhou a sua segunda independência nacional, o que dizer agora com o dinheiro de dois ou três MCA que já atiramos ao mar para alimentar os tubarões que nadam, tranquilamente, neste mar de chicharros, que somos nós?
Ver o ministro das Finanças, na semana passada, no Parlamento, a dizer que o Estado de Cabo Verde vai lutar até “ao limite” para defender o interesse público leva-me a perguntar por que não se fez isso no momento de assinar o contrato com o grupo ETE, sabendo agora que a trapaça aconteceu no próprio Ministério das Finanças?
Foi por isto com uma tremenda dor de alma e vergonha alheia, sobretudo vergonha alheia, que vi uma tão triste cena parlamentar. Não porque atingimos o fundo do poço, porque, para o mal da nossa desgraça, o poço é sempre mais fundo, isto é, cavando, sempre se consegue afundar ainda mais.
Olavo Correia não sabia com quem se estava a meter quando mandou o então ministro dos transportes, José Gonçalves, assinar o contrato com o grupo ETE, ao qual pertence a CVI? Ou, simplesmente, naquele momento de encurralamento parlamentar, apenas estava à procura da porta de saída para a sua fuga em frente?
E o primeiro-ministro, naquele momento de dolorosa prestação de contas, nada tinha a dizer sobre tamanha afronta a Cabo Verde, sendo ele o responsável número 1 pelo contrato assinado com a CVI?
Ver Eurico Monteiro, sentado ao lado de Olavo Correia e Ulisses Correia, fez-me lembrar o Eurico que em 1994, no cineteatro da Praia, no apogeu da então crise que haveria de levar à fundação do PCD, denunciou com a veemência daqueles tempos os 20 milhões de dólares que tínhamos acabado de perder na aventura dos fundos da Towers, nos EUA.
Como se pode ver, para quem já não se lembra, não é de hoje que andamos dar de bandeja dólares e euros aos tubarões deste mundo. Nós que, ingenuamente, nos achamos tubarões especiais, só porque somos azuis, quando os outros pertencem à raça dos tubarões assassinos e predadores.
Infelizmente, em nome dos nossos brandos costumes, nada vai acontecer àqueles que ao longo de todos estes anos nos conduziram, de desastre em desastre, até chegarmos a este escândalo dos 30 ou mais milhões de euros. Os responsáveis por esta irresponsabilidade continuam a fazer a sua vida tranquilamente como se nada grave se estivesse a passar. Continuam a vender louro, quotidianamente, através da televisão, de preferência.
O Ministério Público, que se tem esmerado em chatear a imprensa livre por bagatelas, diante de um escândalo acima de trinta milhões de euros, escândalo este que passa por assinar contratos que o Conselho de Ministros não aprovou, um claro caso de polícia, portanto, ainda não deu qualquer sinal de vida. E muito provavelmente nem vai, porque, onde realmente interessa e importa mexer, o MP sequer pisca o olho.
Não sendo nós um povo que gosta de ‘paredons’ para acertar certos tipos de contas, resta, como consolo, a certeza de que o mundo segue num ritmo tal que já não podemos mais ser governados por amadores. E, o mais triste, nesta “porca miséria”, como diriam os italianos, ninguém nos garante que o amadorismo morreu no dia 23 de Junho de 2025, data do acórdão do Tribunal Arbitral. Esta, sim, uma data histórica como há muito não se via nestes “10 grãzinhos de terra”.
Enfim, e para concluir, muita razão tem o nosso primeiro-ministro quando diz: “Não podemos viver num mundo em que a verdade e a objectividade não existem…”. Sim, é verdade, esse tipo de mundo, realmente, não pode nem deve ser o nosso, pobres cabo-verdianos, que do mundo quase nada pedimos. Bastar-nos-iam “verdade” e “objectividade”, mas também “responsabilidade” na hora de assinar contratos que amarram todo o país e toda a nação por vinte longos anos por um serviço que deixa a desejar, quando, supostamente, se negociou o contrário. Convenhamos, 30 milhões de euros é ainda muita pipa de massa até para um país como Cabo Verde. Quero crer.
