Vieram para o Brasil no início dos anos sessenta, como mais uma história da vasta emigração crioula e de busca por uma vida melhor. A integração não podia ser melhor, de tal forma que os filhos – e mesmo os pais – são imediatamente vistos, neste país, como brasileiros, o que acaba por tornar a sua ligação às ilhas de origem ainda mais remota. Pedro Santos e José Augusto são dois filhos desta emigração, naturais de São Nicolau, que ao longo de décadas trabalham para manter viva esta comunidade, que já é vista como estando em risco de ‘extinção’.
É provável que ‘Simão Salvador’, marinheiro herói natural de Santo Antão, de seu nome verdadeiro Simão Manuel Alves Juliano, tenha sido o primeiro cabo-verdiano a ser conhecido no Rio de Janeiro, ou mesmo em todo o Império do Brasil. Isto graças à façanha de ter resgatado 13 sobreviventes do vapor ‘Pernambucana’, em Outubro de 1853, durante uma tempestade, e de ser abraçado e homenageado pelo próprio Pedro II, o imperador do Brasil.
Depois dele, mais famoso talvez só o senhor Eugénio, natural da ilha de São Nicolau, conhecido por Cabo Roque, fundador da escola de samba X-9, em Santos, em Maio de 1944.
Na verdade, os marinheiros cabo-verdianos terão feito a sua ‘descoberta’ do Brasil através da pesca da baleia, ao longo do século XIX. Entre aqueles que desciam a costa americana e se ficavam por Buenos Aires, na Argentina, alguns voltavam para se instalar no Brasil, sobretudo no Rio de Janeiro. O clima, a cultura, a língua e o modo de ser dos brasileiros, faziam-nos sentir em casa.

Porto de Santos, anos sessenta
E foi assim que, ao o longo do século XX, o Rio de Janeiro tornou-se um dos destinos mais importantes da emigração cabo-verdiana para o Brasil. A cidade acolheu um núcleo de cabo-verdianos que desempenhou um papel significativo na preservação da cultura crioula das ilhas. Assim como algum contributo dado nas lutas sociais, políticas e culturais da sua diáspora, pela independência do país. E já a partir da segunda metade do século XX, foi a cidade de Santos, no Estado de São Paulo, que passou a acolher os imigrantes cabo-verdianos que fugiam às secas que assolaram o país e à falta de condições de vida nas ilhas.
Do cabo da enxada para o Brasil
O triângulo de pequenas cidades paulistas conhecido ABC (Santo André, São Bernardo e São Caetano) tornou-se num polo industrial e uma alternativa para a emigração cabo-verdiana, a partir dos anos de 1950 e 1960, quando a economia brasileira era das mais promissoras do mundo. Pedro Santos e José Augusto são dois cabo-verdianos do Rio e de S. Paulo que têm muito em comum: para além de quase a mesma idade, 67 e 66 anos, respectivamente, ambos foram presidentes de associações cabo-verdianas, ambos nasceram em São Nicolau e estão actualmente ligados à função consular.
O primeiro é cônsul honorário de Cabo Verde no Rio de Janeiro há mais de duas décadas e o segundo dirige o secretariado consular português da cidade de Santos, em S. Paulo. As suas histórias de vida são o espelho desta emigração para um Sul que na época parecia promissor, valendo a pena uma viagem por vezes demasiado longa. Pedro Santos deixou Stancha, na Ribeira Brava, em São Nicolau, aos 14 anos.
“Era uma vida dura, de pegar na enxada e ir para a horta. O meu pai já estava em Boston, na América, e a minha mãe já tinha ido para o Brasil. Fiquei com o meu irmão e o meu avô Anacleto. Eu acordava muito cedo, para ir buscar água na cabeça, lenha, trazer um pé de batata ou de mandioca, e depois é que ia para a escola. Fomos daqui para Lisboa e depois de algum tempo apanhámos o barco e atravessámos o oceano rumo ao Brasil. O meu pai pagou sete passagens. Foi assim que chegámos ao Brasil, em 1972, para morar em Nova Iguaçu, onde havia a maior concentração de cabo-verdianos do Rio. Por esta altura, muitas famílias cabo-verdianas moravam também no centro da cidade, como Catumbi, Santa Teresa, mas depois a zona ficou perigosa e foram saindo aos poucos, já tinha começado essa violência”, diz.

José Agusto do Rosário
Já José Augusto chegou ao Brasil com apenas três anos, com a mãe. O pai não era homem para deixar a sua Covoada natal, na ilha de São Nicolau. Apesar da tenra idade, Augusto nunca perdeu os laços com Cabo Verde e ao longo da vida adulta habituou-se a visitar o pai em Covoada, que já tem 90 anos. Conta como, ao contrário das outras comunidades, espalhadas pelo mundo, a língua materna é a primeira a ser sacrificada pelos filhos dos imigrantes no Brasil.
“Os pais entendem que na escola têm de falar português e por isso fazem tudo para os filhos deixarem o crioulo. No meu caso, só fui resgatar o crioulo aos dezasseis anos, porque senti essa vontade. Hoje falo, comunico em crioulo, mas somos poucos a fazê-lo, que eu me lembre sou eu, a minha irmã e mais duas pessoas”, diz.
Mas isso não impede a ligação, adianta: “No próximo ano, em Julho de 2026, já está marcada uma festa dos covoadeiros espalhados pelo mundo, lá mesmo em Covoada.”
E se há quem que conhece muito bem a realidade das comunidades de São Paulo e do Rio, são eles. As associações cabo-verdianas do Rio de Janeiro e de Santos eram os espaços onde se reuniam os primeiros imigrantes para as festas comemorativas, sobretudo depois da independência, para ouvir música, comer cachupa e ter contacto com a cultura das ilhas. Hoje, praticamente são frequentadas pelo mesmo número de pessoas, que varia entre as 300 e 350, contando com os filhos e netos.
Os estudantes bolseiros do ABC
Ambas conheceram o auge com a chega dos primeiros estudantes bolseiros, no início dos anos de oitenta. “Chegámos a ter centenas de estudantes bolseiros, o que deu um grande impulso nas nossas actividades, assim como já como cônsul honorário, a necessidade da nossa intervenção para ajudar muitos que chegavam sem muitos meios, sem dinheiro. Somámos pequenas vitórias, como algumas parcerias, que nos permitiram ter alunos de Cabo Verde na Escola Naval, aqui do Rio, por exemplo, para onde é difícil entrar, com provas muito exigentes,” recorda Pedro Santos.
Para José Augusto, essa chegada de estudantes das ilhas em massa, nas cidades do ABC, trouxe também um maior interesse às novas gerações dessa comunidade.
“Aqui posso identificar dois momentos: primeiro acompanhavam os pais, gostavam das festas, encontros com outros amigos e familiares, primos, tendo crescido nesse ambiente. O segundo momento, foi essa chegada dos estudantes das ilhas, a partir de 1982, e os filhos dos cabo-verdianos começaram a identificar-se com eles, houve trocas de experiências, o reaproximar da associação, os jovens faziam festas com as músicas de Cabo Verde. Recordo que havia um grande número de estudantes, de 1982 a 2002, só em Santo André havia mais de 80, o que ajudou a dar uma refrescada, e chegámos mesmo a recrutar alguns para a associação. Mas após esse período e a redução dos estudantes, as coisas mudaram e esses jovens descendentes voltaram-se para os brasileiros.”
Pedro Santos fala também das novas gerações, todos muito bem inseridos na sociedade brasileira e dessa atitude dos pais contra o uso do crioulo.
“Mas o que aconteceu é que muitos descobriram uma nova pátria, a terra de onde os pais vieram. Recordo que uns já eram comandantes da marinha, outros da polícia militar, da aeronáutica, médicos em hospitais, que nos davam e dão apoio com a ‘velha guarda’. Durante o tempo em que fui professor dei orientação a muitos estudantes, igualmente oriundos dos restantes Palops, eu era o ‘Pedrão’ que resolvia muitas situações.”
No entanto, os antigos dirigentes associativos divergem num aspecto importante: o futuro desta comunidade. Para José Augusto, não há muitas dúvidas: “Ela está em extinção, a comunidade está acabando, os imigrantes envelhecendo, todos os anos vão morrendo e receio que com isso a comunidade vai ficar esquecida. Já são poucos os que se reúnem em S. Paulo e no Rio, não há mais imigração, os jovens já são brasileiros, não é como nos Estados Unidos ou na Europa.”
Pedro Santos prefere lembrar os estudantes cabo-verdianos que por aqui passaram, como José Maria Neves ou Janine Lélis, e do esforço contínuo para manter viva a cultura das ilhas. “Mesmos os jovens descendentes gostam da sua festa crioula, uma cachupinha ‘guisode’ pela manhã, a música da Lura, do Grace Évora. Pelas festas do último 5 de Julho vieram ónibus lotados, da zona de Mesquita, Nova Iguaçu, Niterói, Botafogo, outros vieram de uber, tivemos 350 pessoas porque o espaço não dava para mais.” Mas é com certa mágoa que lembra como a sede da associação, em Mesquita, praticamente fechou.
“Nela chegámos a receber muitos governantes com o apoio da Prefeitura, mas depois a zona foi ficando muito perigosa e entrou em depreciação. Hoje praticamente não tem mais vida, infelizmente.”
De S. Paulo, José Augusto lembra como, apesar dessa inevitável “extinção”, os pais e avós que chegaram entre o final dos anos cinquenta e os setenta, foram muito bem sucedidos nos seus esforços de educarem os seus filhos. O que por si só valoriza muito esta comunidade.
“Em termos de percentual, as novas gerações têm melhor preparo académico que os próprios brasileiros. Quase todos têm formação universitária, dada essa preocupação passada pelos seus pais, do imigrante que luta para ter património e formar os seus filhos, a ideia de não ser apenas o técnico quando podes ser o engenheiro. Assim, estão na medicina, enfermagem, no mercado financeiro em São Paulo.”
Apesar de formado em Letras, José Augusto escolheu uma carreira na banca, tendo passado por vários bancos internacionais, como Chase Manhatan, o Lloyds Bank, JP Morgan. Actualmente, é apenas conselheiro na associação cabo-verdiana de Santos, criada em 1978. De Santos, Augusto foi para São Paulo nos anos de 1980. Voltou em 2020 para assumir a chefia do escritório consular de Portugal nesta cidade, a mais importante depois do Rio e de São Paulo, com mais de 50 mil portugueses inscritos. O trabalho com o consulado português, na verdade, como explica, começou para ele aos dezasseis anos.
“Mas depois da independência, fiquei 6 anos apátrida: perdi a nacionalidade portuguesa, não tinha a cabo-verdiana nem me podia naturalizar brasileiro. Hoje tenho os três passaportes e sou funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal.”

Pedro Santos ladeado pela esposa e José Augusto do Rosário
A promessa incumprida do MNE de Cabo Verde
Pedro Santos ainda se desdobra quando chefes de Estado e governantes de Cabo Verde chegam ao Rio de Janeiro. O tempo das centenas de estudantes já lá vai. A profissão de professor de matemática e física em escolas militares, avaliador nas provas do vestibular, sempre deixavam algum tempo livre para associação e agora para o consulado.
“Os imigrantes ficaram menos, o Brasil não se tornou naquilo que muitos pensavam e viver aqui passou a ser mais de sobrevivência, arrumar um dinheirinho. Não é como na Holanda ou nos Estados Unidos, onde o imigrante trabalha e vai poupando para uma casa ou para ir de férias a Cabo Verde. No Brasil os salários são baixos e já não é atractivo.”
Na sua opinião, as associações também perderam a liderança forte de outros tempos. Lembra o seu papel, nesses nos primeiros anos, quando havia imigrantes na construção civil, no porto, em fábricas de cimento, nas empresas privadas. “O cartão postal que recebíamos não era nada daquilo que depois viemos encontrar, uma discrepância muito grande com a realidade. Mas onde há vontade há um caminho.”
Mas o caminho que veio ao seu encontro, nos últimos anos, não foi o melhor. Durante a pandemia, o trabalho de cônsul honorário obrigou-o a deslocar-se à Ilha do Governador para ir buscar um documento importante para uma família, uma certidão de óbito.
“Essa minha viagem foi fatal, ainda estávamos em plena pandemia e não houve como evitá-la. O certo é que dias depois dei positivo para a Covid. E aqui começaram os problemas, as sequelas da Covid. Primeiro a má circulação num pé, a obstrução das veias e artérias, depois generalizou-se pela perna. Fiz 13 cirurgias e estive internado sete meses. Mas infelizmente já não havia muito a fazer.”
Pedro Santos sofreu a amputação praticamente de toda a perna esquerda. Hoje espera por uma prótese para poder deixar a cadeira de rodas e continuar a trabalhar.
Uma espera que já está envolvida em mágoa, uma promessa demora e que tarda. “Foram muitos anos dedicados à comunidade e a Cabo Verde, sem nunca receber nem pedir nada, pelo contrário, muitas vezes obrigado a pôr dinheiro do meu próprio bolso. Mas a prótese prometida pelo governo de Cabo Verde tarda muito em chegar, apesar dos esforços incansáveis do nosso embaixador em Brasília, João Pedro Morais.” Pedro Santos diz-se abandonado pelas autoridades cabo-verdianas.
Mas mantém-se firme e optimista nas suas convicções: “Extinção? Não, isso não vai acontecer, os jovens ainda têm muito carinho por Cabo Verde e querem manter a tradição. Eles escutam a música da terra dos seus pais. Temos por aqui uns 10, 12 médicos que vieram estudar e acabaram ficando no Rio e ajudam a nossa ‘velha guarda’ quando é preciso, quando algum tem problema de saúde”.
Joaquim Arena
