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Estatísticas ao serviço do poder: e a Ciência, onde fica?

Por: António Delgado Medina*

A sete meses das eleições legislativas, o país assiste, com preocupação crescente, à forma como a verdade estatística parece estar a ser moldada para alimentar uma narrativa política que nem de perto corresponde ao quotidiano dos cabo-verdianos.

As recentes denúncias tornadas públicas por técnicos do Instituto Nacional de Estatística (INE) são, no mínimo, alarmantes. Fala-se em manipulação de dados desde 2016, alteração de metodologias sem base científica, e decisões unilaterais que distorcem a leitura da realidade económica nacional. Fala-se, enfim, de um INE ao serviço do poder político, quando deveria estar ao serviço da verdade.

Segundo os próprios técnicos da casa, tudo começou com uma mudança de paradigma imposta pelo então diretor das Contas Nacionais e actual presidente do Conselho Diretivo do INE, João de Pina Cardoso. Contra o parecer da equipa técnica, decidiu-se que empresas não poderiam apresentar Valor Acrescentado Bruto (VAB) negativo — uma posição sem respaldo nas normas internacionais de contabilidade nacional. A consequência? A produção das empresas passou a ser artificialmente inflacionada, para que “nenhuma” apresentasse resultados negativos.

Pior: a nova metodologia foi aplicada apenas a partir de 2016, sem qualquer retroatividade. Ou seja, compararam-se dados calculados com critérios diferentes, criando uma falsa sensação de crescimento. Os números do PIB cresceram, sim — mas não a economia real. É como pintar um quadro cor-de-rosa sobre um país que, na verdade, luta diariamente com o desemprego, com salários baixos, com precariedade e com uma juventude cada vez mais descrente.

Os dados são claros: sem essa alteração metodológica, a taxa de crescimento de 2016 não teria sido de 4,7%, como anunciado, mas de apenas 2,0%. A diferença não é um mero detalhe técnico — é uma distorção com implicações reais na perceção que temos da nossa economia. É, em suma, enganar o povo.

Mas a questão vai muito além das eleições. Manipular estatísticas compromete o futuro. E levanta várias questões graves:

Como ficam os trabalhos académicos produzidos com base em dados falseados?

Como confiar em estudos de consultoria nacional ou internacional que se baseiam em estatísticas viciadas?

Como justificar aos nossos parceiros internacionais que somos um país de “rendimento médio alto”, quando tal classificação pode ter sido alcançada com base em dados manipulados?

Estes não são meros erros técnicos. São decisões políticas mascaradas de técnica. E como tal, merecem responsabilização.

As instituições da República devem estar acima de jogos partidários. O INE, em particular, tem a missão sagrada de produzir informação fiável, rigorosa e transparente. Quando esta missão é traída, todos perdemos: o cidadão, o académico, o investidor e, sobretudo, a própria democracia.

Este não é apenas um debate sobre números. É um debate sobre ética, sobre responsabilidade pública, e sobre o tipo de país que queremos construir. Cabo Verde não pode ser refém de estatísticas manipuladas para alimentar narrativas eleitorais.

É tempo de os cabo-verdianos exigirem clareza, transparência e responsabilidade. A verdade estatística não pode ser a primeira vítima do calendário eleitoral.

12 de agosto de 2025

*Geógrafo, doutorando em Ciências Sociais

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