Por: João Serra
Quando o Governo de Cabo Verde concedeu o transporte marítimo inter-ilhas à CV Interilhas (CVI), apresentou a medida como uma solução quase milagrosa para um problema histórico. A promessa consistia em garantir ligações regulares, previsíveis, seguras e de qualidade, permitindo que cidadãos, empresários, comerciantes e emigrantes deixassem de viver na incerteza quanto à circulação de pessoas e mercadorias entre as ilhas. O Primeiro-Ministro chegou a assegurar que, a partir desse momento, os cabo-verdianos poderiam programar viagens, produções e negócios com confiança. Na teoria, a parceria público-privada entre a Transinsular, do grupo português ETE, com 51 % do capital, e armadores nacionais, com 49 %, parecia perfeita: exclusividade do serviço em troca de investimentos em novos navios, frequências mínimas asseguradas e condições de segurança e conforto.
O que aconteceu na prática foi o oposto. Volvidos mais de seis anos desde a assinatura do contrato, os aspetos fundamentais ainda não foram cumpridos pela CVI. Em vez dos cinco novos navios ROPAX, com menos de quinze anos de idade, prometidos no caderno de encargos, a Transinsular socorreu-se de embarcações antigas de armadores nacionais e fretou navios no exterior, sem nunca investir na renovação da frota. A vetustez das embarcações trouxe consigo avarias constantes, cancelamentos de viagens e incumprimento das frequências contratadas. Linhas essenciais, como a ligação São Vicente–Santo Antão, que deveria ter três viagens diárias, ou a rota Brava–Fogo–Santiago, que deveria ter seis ligações semanais, estão longe de ser cumpridas. Passageiros são deixados em terra sem aviso, comerciantes ficam com mercadorias retidas nos portos, emigrantes em férias perdem dias de trabalho à espera de um barco que não chega. A vida quotidiana de milhares de cabo-verdianos foi diretamente afetada pela incapacidade da concessionária em cumprir aquilo a que se comprometeu.
A questão, contudo, não é apenas a falha da CVI, mas sobretudo a irresponsabilidade do Governo. O Estado não só falhou em fiscalizar e exigir o cumprimento do contrato, como aceitou cláusulas lesivas que hoje custam indemnizações milionárias ao erário público. Um exemplo flagrante é a cláusula que garante à concessionária 10 % da receita anual como compensação. O Governo aceitou-a na negociação, tentou depois declará-la inválida, mas continuou a pagar em 2019 e 2020, antes de mudar de posição. Essa contradição fragilizou a defesa do Estado e abriu caminho à vitória da CVI no tribunal arbitral. A gestão da exclusividade foi igualmente desastrosa: o contrato era ambíguo e o Estado licenciou outra operadora sem antes clarificar os termos, fornecendo à concessionária mais um argumento sólido para exigir indemnização. O mesmo sucedeu com os critérios de custos elegíveis: primeiro aprovados e pagos, depois rejeitados sem revisão contratual formal, demonstrando instabilidade regulatória e quebra de confiança. O Governo alterou ainda horários e suspendeu tarifas sem prever compensações, em clara violação do princípio do equilíbrio económico-financeiro dos contratos de serviço público.
O resultado desta ignorância económica é devastador. O tribunal arbitral condenou o Estado de Cabo Verde ao pagamento de indemnizações que, à data, já ascendem a pelo menos 19 milhões de euros (VPM & MF), valor que continuará a aumentar à medida que forem efetuados novos cálculos e o tempo avançar. Trata-se de uma fatura colossal para um país pequeno e com recursos limitados. E tudo isto em virtude de um contrato mal negociado, mal gerido e conduzido sob a ilusão de que o investidor estrangeiro era um parceiro benevolente, quando na realidade apenas procurava rentabilizar ao máximo o capital investido.
É aqui que se expõe a verdadeira falha: a crença ingénua do Governo de que o grupo ETE agiria movido por uma espécie de solidariedade para com os cabo-verdianos. A realidade da economia é bem diferente. Como lembrava Adam Smith, não é da benevolência do padeiro ou do talhante que esperamos o nosso jantar, mas sim da sua atenção ao próprio interesse. Em outras palavras, as relações económicas são guiadas pelo proveito próprio, não pela compaixão. Schumpeter reforçava a mesma lógica ao explicar que o capitalismo se renova pela incessante procura de novas oportunidades de lucro, e Milton Friedman foi ainda mais direto ao afirmar que a responsabilidade social das empresas é aumentar os seus lucros. Nos negócios não há amigos, não há compaixão, apenas interesses.
O Governo errou ao confundir essa lógica estrutural com uma suposta parceria solidária. Elevou o investidor à condição de “anjo salvador”, quando na verdade estava perante um agente económico guiado pela maximização do retorno. O resultado dessa ingenuidade é visível: um serviço público degradado, indemnizações milionárias e uma população refém.
A tudo isto soma-se um outro problema estrutural: a intransparência. Desde o concurso público que originou a concessão, marcado por exclusões polémicas e impugnações, até à gestão atual do contrato, com contas não validadas e omissões sucessivas, o processo tem sido envolto em opacidade. O Governo assinou compromissos sem os publicitar devidamente, deixou a CVI operar sem cumprir as condições mínimas exigidas e, quando confrontado, limitou-se a negar dívidas ou a prometer revisões futuras. Esta intransparência não é exceção, é regra. É a mesma que marcou a privatização da TACV: contratos escondidos da opinião pública, compromissos contratuais assumidos pelo comprador que nunca se cumpriram, ocultação dos números reais e, no fim, mais dívida assumida pelo Estado e mais encargos para os contribuintes.
A leviandade com que se tratam os recursos públicos ficou simbolizada na frase do Ministro das Finanças, Olavo Correia, segundo a qual Cabo Verde teria “dinheiro que nunca mais acaba”. Longe de ser uma metáfora infeliz, a frase parece ter-se tornado programa político. O Governo comporta-se como se o erário fosse inesgotável, pronto a ser utilizado para compensar investidores estrangeiros, para resgatar empresas falidas ou para sustentar negócios malparados. Essa atitude, mais do que irresponsabilidade, cria um incentivo perverso: empresas estrangeiras percebem a fragilidade institucional, a falta de escrutínio e a retórica do “dinheiro sem fim” e exploram-na até ao limite. Assim, em vez de proteger o interesse público, o Estado torna-se cúmplice da sua própria captura por interesses privados.
Em suma: a concessão da CVI revelou-se um desastre económico e social, fruto de uma combinação de ideologia cega, ingenuidade política e intransparência governativa. O Estado assinou contratos que não soube gerir, acreditou em promessas que não se concretizaram, deixou-se explorar por um parceiro que, como qualquer outro, só procurava rentabilizar o seu capital. O preço dessa ignorância é agora pago pelos cabo-verdianos, não apenas em perdas materiais e tempo desperdiçado, mas também em indemnizações milionárias que drenam os já escassos recursos públicos.
Praia, 16 de agosto de 2025
*Doutorado em Economia/Blog:
www.economianaserra.blogspot.com)
