Por: Jorge Lopes
A concessão do transporte marítimo interilhas foi apresentada como solução para um problema histórico de mobilidade e integração em Cabo Verde. Porém, aquilo que começou com promessas de modernização e proteção do interesse público acabou por se transformar num processo marcado por cedências sucessivas, fragilização contratual e exposição financeira do Estado. Neste artigo de opinião, Jorge Lopes analisa, passo a passo, como a lógica inicial de proteção foi sendo desvirtuada, identifica responsabilidades políticas inadiáveis e aponta os caminhos possíveis — da reformulação à resolução do contrato — para que o país não continue refém de um modelo que já se revelou falhado.
O ponto de partida: o Caderno de Encargos
A concessão do transporte marítimo interilhas em Cabo Verde foi anunciada como um instrumento decisivo para modernizar a mobilidade marítima, integrar as ilhas, reduzir desigualdades e criar condições para uma maior coesão nacional. Era, em teoria, uma oportunidade histórica para transformar um setor cronicamente fragilizado, marcado por irregularidades, frotas envelhecidas e um serviço que não respondia às necessidades dos cidadãos.
O processo começou com intenções claras e instrumentos legais que procuravam conferir solidez, mas acabou por se transformar num percurso de erosão do interesse público. O Caderno de Encargos do concurso, publicado em 2018, delineava de forma detalhada os parâmetros técnicos, financeiros e operacionais da futura concessão. Embora apresentasse insuficiências e deixasse de fora algumas orientações importantes, constituiu ainda assim uma referência relevante para a proteção do interesse coletivo. Nesse momento, o Estado posicionava-se como guardião do equilíbrio contratual, assumindo formalmente o compromisso de assegurar que o serviço público fosse prestado em condições de qualidade, acessibilidade e regularidade.
Da minuta à flexibilização das garantias
A elaboração da minuta do contrato de concessão, aprovada em Conselho de Ministros em 2019, introduziu as primeiras cedências. A redação começou a flexibilizar exigências, diluindo responsabilidades da concessionária e enfraquecendo mecanismos de fiscalização. Alterações aparentemente subtis, justificadas pela necessidade de atrair o investidor privado, revelaram-se o primeiro sinal de enfraquecimento. O equilíbrio começou a deslocar-se, e a prioridade deixou de ser a salvaguarda do interesse público para se tornar a viabilização do negócio.
O contrato assinado: da cedência à rutura
A rutura deu-se com o contrato de concessão efetivamente assinado. O que antes eram flexibilizações transformou-se em alterações estruturais. O Estado passou a assumir encargos que caberiam à concessionária, a fiscalização prévia do Tribunal de Contas foi afastada e várias cláusulas resultaram em profundo desequilíbrio contratual. O que deveria ser uma parceria transformou-se num instrumento de transferência de riscos e custos para o setor público. A credibilidade do Estado como parte contratual ficou seriamente fragilizada.
Os aditamentos: a consolidação da fragilidade
Se os aditamentos de 2023 tivessem corrigido falhas, ainda haveria espaço para restabelecer o interesse público. Mas sucedeu o contrário. Em vez de corrigir, agravaram. O Estado assumiu mais responsabilidades financeiras e consolidou a sua dependência da concessionária. O país passou a estar amarrado a compromissos desvantajosos, sem margem negocial e sujeito a penalizações severas em caso de litígio. O interesse público, que no início tinha proteção elevada, chegou aqui praticamente desprotegido.
Tabela consolidada: da proteção à fragilidade
A tabela mostra de forma objetiva a degradação progressiva: cada fase retirou uma camada de proteção ao Estado e ao interesse coletivo, invertendo a lógica inicial do concurso.
O fio condutor da erosão do interesse público
O percurso revela uma linha descendente clara: o Caderno de Encargos representava alguma solidez; a minuta cedeu; o contrato representou rutura; e os aditamentos consolidaram a exposição. A cada etapa, a proteção do interesse público perdeu força.
Se representarmos graficamente esta trajetória, percebemos um declínio contínuo: começa alto, desce ligeiramente, cai abruptamente e atinge níveis mínimos. O gráfico não é apenas simbólico; é a demonstração visual da degradação da posição do Estado.
As consequências de uma trajetória de cedências
O caso da concessão interilhas não é apenas um episódio infeliz. É um exemplo paradigmático de como o Estado se fragiliza por dentro quando abdica da coerência entre o que define e o que assina. Esta incoerência mina a confiança dos cidadãos, enfraquece a autoridade do país perante parceiros externos e cria precedentes perigosos para futuras negociações.
O transporte marítimo interilhas não é um simples negócio, é uma alavanca de desenvolvimento e coesão social. Tratar esta concessão como uma mera transação comercial foi um erro de enormes proporções.
Lições e exigências para o futuro
Cabo Verde precisa de recuperar a condição de guardião intransigente do interesse coletivo. Não basta elaborar bons Cadernos de Encargos: é preciso garantir consistência em todas as fases, da minuta ao contrato e aos aditamentos. É preciso escrutínio, transparência e responsabilização. O futuro do país exige que os processos estratégicos não voltem a seguir este caminho de erosão.
Se a lição desta concessão não for aprendida, corremos o risco de repetir erros e comprometer, mais uma vez, a confiança dos cidadãos no Estado e a credibilidade do país no plano internacional.
Responsabilidade política e demissão inadiável
Chegados ao ponto em que nos encontramos, a evidência é clara: não estamos perante meras falhas técnicas ou deslizes administrativos. Estamos perante um processo de concessão pública que, em várias etapas — desde o caderno de encargos até ao contrato assinado e ao aditamento — foi sendo progressivamente desvirtuado, afastando-se das garantias de transparência, legalidade e defesa do interesse público. Cada omissão, cada alteração não validada, cada desvio ao que fora aprovado em Conselho de Ministros contribuiu para enfraquecer a posição do Estado e, por consequência, lesar a confiança dos cidadãos.
Num Estado de direito democrático, a responsabilidade política não é uma abstração: é o cimento que sustenta a legitimidade de quem governa. Quando um ministro assina, permite ou consente que se assine um contrato em moldes distintos da minuta aprovada, viola o princípio da lealdade institucional e coloca em causa a própria autoridade do Conselho de Ministros. Mais do que uma irregularidade, estamos perante um ato político grave, com efeitos duradouros na economia, na imagem do Estado e no bolso dos cabo-verdianos.
Nesse contexto, não basta minimizar os danos ou diluir responsabilidades. A pressão da sociedade civil, legítima e cada vez mais intensa, demanda uma resposta inequívoca: a demissão é inevitável. Seja por iniciativa própria, como um ato de accountability e respeito às instituições, seja por decisão do Chefe do Governo, a renúncia não é apenas uma questão de preservação da dignidade do cargo, mas uma condição indispensável para a reconstrução da confiança pública, já profundamente abalada.
Manter-se em funções após tamanha erosão da credibilidade é insustentável. A responsabilidade política não se confunde com responsabilidade penal ou administrativa, mas é igualmente exigente: ou se assume, ou o Estado de direito democrático perde consistência. Neste caso, não há como fugir — a demissão é inadiável e incontornável.
Não se trata de retaliação política, mas de afirmação de princípios. A responsabilidade política não admite evasivas: ou se assume, ou o Estado perde consistência. E neste caso, a demissão é um imperativo inadiável.
Desde a primeira hora deste processo, não faltaram vozes da sociedade civil e da oposição a denunciar as opções inaceitáveis que o Governo foi tomando. As críticas ganharam ainda maior acuidade quando veio a público a minuta de aditamento (Resolução n.º 32/2023), onde se consolidaram desvios inaceitáveis face ao que havia sido aprovado em Conselho de Ministros.
Num Estado de direito democrático, a Presidência do Conselho de Ministros tem a obrigação de zelar para que os mandatos e as autorizações dadas a membros do Governo sejam cumpridos com rigor. Ora, a resolução que mandatou os ministros das Finanças e dos Transportes Marítimos para celebrarem o contrato de concessão não foi respeitada nos seus termos. E o Primeiro-Ministro, que além de chefe do Governo tem no Ministro das Finanças o seu Vice-Primeiro-Ministro, não pode alegar desconhecimento. Pior ainda: sempre que confrontado, inclusive no Parlamento, o Chefe do Governo respondeu com arrogância às legítimas interpelações.
Os prejuízos desta concessão não são apenas materiais, mas também morais e políticos: lesaram a economia, fragilizaram a confiança dos cidadãos nas instituições e abalaram a imagem internacional de Cabo Verde. Por isso, a responsabilização política não pode ser adiada. O Primeiro-Ministro não está isento — pelo contrário, deve ser o primeiro a assumir as suas responsabilidades por inteiro e em toda a linha, devendo ainda uma explicação clara e transparente aos cabo-verdianos.
A responsabilização não se limita ao Chefe do Governo. Os responsáveis diretos por este processo devem igualmente responder pelas decisões tomadas, e assumir as suas responsabildades polítivcas, pela forma como deturparam os mandatos recebidos e pelas consequências que delas resultaram. Para além da dimensão política, cabe às entidades competentes avaliar se existem responsabilidades de outra natureza — administrativas, financeiras ou até jurídicas — que devam ser apuradas. Só assim será possível restaurar a confiança no Estado de direito democrático e garantir que tamanha erosão do interesse público não volte a repetir-se.’
O futuro da concessão: coragem ou perpetuação do erro?
O futuro da concessão interilhas não pode ser decidido pela inércia ou pelo medo. O contrato em vigor já demonstrou ser um fardo desproporcional para o Estado e para os cidadãos: custos elevados, incumprimentos reiterados e uma perda progressiva do interesse público. Reformar apenas na superfície seria perpetuar o mesmo modelo que levou Cabo Verde a esta situação.
É verdade que a resolução comporta riscos — custos indemnizatórios, perceção internacional negativa, perturbações transitórias no serviço. Mas há um risco ainda maior: o de manter viva uma concessão que já se revelou insustentável. Esse risco traduz-se em serviços precários, dependência de um operador único e degradação da confiança dos cidadãos na capacidade do Estado de defender o bem comum.
O país não pode permanecer refém de más escolhas contratuais. A solução exige coragem política: resolver o contrato ou reformulá-lo de raiz, garantindo que qualquer novo modelo assente na concorrência, na diversificação de operadores e na proteção clara do interesse nacional. Sem isso, não haverá mobilidade marítima digna desse nome, nem confiança no futuro.
Cabo Verde tem de decidir entre prolongar a hemorragia ou cortar, de uma vez por todas, com um modelo falhado. E nesta encruzilhada, a única decisão responsável é a que recoloca o interesse público no centro — mesmo que isso implique enfrentar tempestades jurídicas e políticas.
