São Vicente jamais será igual. E talvez não deva ser. A tragédia pode ser o catalisador de uma nova era, mais consciente, mais exigente, mais solidária. Mas isso dependerá da coragem colectiva de romper com o passado e construir, não apenas casas, mas um novo pacto social. Além de arriscado, há quem diga que construir em cima do destruído nunca é igual.
A madrugada de 11 de Agosto marcou São Vicente com uma ferida profunda. As chuvas intensas, não apenas devastaram infraestruturas e habitações, mas também abalaram a estrutura emocional e económica da ilha. Desde então, o quotidiano dos moradores tem sido uma luta constante por abastecimento, estabilidade e dignidade. No espírito dos mindelenses paira a ideia de que nada deve ficar como dantes.
Pouco a pouco, a ilha reergue-se dos escombros, as ruas são limpas e, nos bairros, são os próprios moradores que decidiram lançar mãos à obra, porque a tarefa de reerguer São Vicente é de todos.
Nos mercados, a escassez de hortícolas e legumes tornou-se rotina. A bancária Carla Mendes relata isso mesmo: “A subida dos preços está a afectar até quem tem salário fixo. Imagine quem vive do dia a dia. Há já famílias em extrema dificuldade, apesar da onda de solidariedade”.
O sector da água também enfrenta dificuldades. A empresa produtora intensificou esforços, mas especialistas alertam: “Sem investimento sério em infraestrutura hídrica, continuaremos vulneráveis. A chuva revelou o que já estava frágil”.
Por outro lado, pescadores como Octávio Alves vêem uma janela de oportunidades, mas que não conseguem chegar a ela: “Com o mar mais agitado, o peixe tem aparecido mais. Mas falta logística para aproveitar isso. O mercado está desorganizado.”
Reconstruir não é repetir
A reconstrução física da ilha está em curso, com fornecimento de materiais de construção a ganhar ritmo. Além do Gabinete de Crise, encabeçado pelo ministro da Administração Interna, Paulo Rocha, que continua na ilha natal, o governo lançou um pacote de medidas para ajudar a reerguer São Vicente (ver A08eA09).
Mas, desconfiado que anda dos políticos, José Oliveira defende “menos promessas, mais acções”. Como diz, “as autoridades têm de assumir responsabilidades, e nós também”, frisando que “construir em cima do destruído nunca é igual”.
Liliana Fonseca, professora aposentada e activista, vê na tragédia do dia 11 de Agosto uma oportunidade: “A catástrofe pode servir como uma lição valiosa. O futuro de São Vicente dependerá das escolhas que a comunidade e os líderes farão.”
A nossa entrevistada defende um novo modelo de desenvolvimento, centrado na sustentabilidade e justiça social. “É fundamental que as autoridades monitorem a situação para evitar abusos e garantir que as famílias mais vulneráveis recebem o apoio necessário.
Vozes da comunidade
A juventude tem sido protagonista na resposta à crise. Kelvin Lopes, estudante de engenharia ambiental, afirma: “Temos de deixar de normalizar o improviso. A ilha precisa de planeamento sério e educação ambiental.”
A funcionária pública Sandra Rocha destaca a solidariedade que tem surgido de todos os lados: “Nunca vi tanta gente ajudar sem esperar nada em troca. Mas isso não pode substituir políticas públicas eficazes.”
Já o pedreiro Adilson Monteiro é directo: “A gente quer trabalhar, reconstruir. Mas sem apoio, fica difícil. Não dá para esperar só por promessas.”
E a professora aposentada Celina Andrade reflecte com pesar e esperança: “São Vicente mudou. Mas talvez seja essa dor que nos obrigue a mudar para melhor.”
Planeamento e segurança
O especialista em segurança Paulo Brito foi contundente ao avaliar os riscos evitados por pouco: “Dentro do azar, tivemos muita sorte.”
A frase, aparentemente paradoxal, revela o que muitos técnicos têm alertado há anos: a ausência de um Plano Director Municipal (PDM) em São Vicente compromete não só o ordenamento urbano, mas também a capacidade de resposta a emergências.
“Faltam planos de contingência claros, zonas de evacuação definidas, e protocolos de segurança que envolvam a comunidade. Sem isso, o próximo evento pode não ter a mesma sorte”, reforça Brito.
No entender dos nossos entrevistados, a tragédia de 11 de Agosto expôs a urgência de repensar o território com base em critérios técnicos, ambientais e sociais. A improvisação não pode continuar a ser a norma e tão-pouco a irresponsabilidade política deve continuar a cavalgar livre e solta pela ilha do Monte Cara.
Nada será como dantes? Esta é a pergunta que se vai ouvindo, aqui e ali, nestes dias em que São Vicente procura reerguer-se dos escombros.
Ivan Fortes, o rosto do desalento em Calhau: “Perdemos tudo”

Ivan Fortes
O jovem agricultor Ivan Fortes viu o seu investimento pessoal — avaliado em mais de cinco mil contos — ser completamente destruído pelas cheias que atingiram a Ribeira de Calhau na madrugada de 11 de Agosto.
Mas o drama não é só dele. Diversos agricultores da zona perderam quase tudo: hortas alagadas, terras cobertas por lama e pedras, estruturas arrastadas pela força da água.
Fortes lamenta a falta de acção preventiva: “Não foi por falta de alertas. Por diversas vezes, pedimos a correcção torrencial, mas nunca chegou.”
A destruição, que em alguns pontos atingiu dois metros de altura de entulho, compromete a produção local por tempo indeterminado.
A escassez de produtos agrícolas e pecuários já se faz sentir nos mercados de São Vicente, com subida de preços atribuída à quebra na oferta.
Uma equipa da Delegação do Ministério da Agricultura e Ambiente encontra-se no terreno a avaliar os estragos e recolher dados para possíveis medidas de apoio aos agricultores de São Vicente.
João A. do Rosário
Publicado na Edição 938 do Jornal A Nação, do dia 21 de Agosto de 2025
