Na altura da sua chegada a Santo Antão Pitt Reitmaier encontrou também outro médico cooperante, da mesma organização, e dois outros muito antes dele. Pelos acontecimentos e protestos contra a Lei da Reforma Agrária, em Agosto de 1981, os outros dois colegas, incluindo o cabo-verdiano António Pedro Delgado, estavam fora da ilha havia dois ou três meses, como recorda.
Tropa em força para Ribeira Grande
“Eu era o único médico de serviço, quatro dias por semana, na Ribeira Grande, no hospital. Mas, oficialmente, eu estava era no Porto Novo. Mas veio o momento em que o barco ‘5 de Julho’ atracou, no dia 30, com a tropa, meteram os soldados em camiões requisitados, e nesse mesmo dia eu peguei na minha mota e fui também para a Ribeira Grande. Quando os tumultos e os tiros aconteceram, eu estava no hospital da Ribeira Grande, junto com o enfermeiro Rufino, preparados para praticamente realizar umas cirurgias de guerras napoleónicas… mais ou menos isso, sem anestesia, com as serras da morte, sem nada… Felizmente, nada disso aconteceu.”
Pitt Reitmaier confessa que esperou o pior da parte de soldados jovens, acabados de chegar, sem saber nada, “para além de usar uma espingarda, numa acção policial”, numa ilha desconhecida.
Lembra-se das palavras de ordem escritas nas paredes, “Abaixo a Reforma Agrária”, “A tua morte é certa”, escritas nas casas dos comerciantes, ou de pessoas conhecidas como representantes ou associadas ao partido (PAICV), como recorda, “interessante é que os visados eram os mais burgueses do partido, comerciantes, e os oponentes da reforma agrária escreveram, em letras grandes, ‘A tua morte é certa’”, antes daquilo que viria a ser o 31 de Agosto.
O médico alemão recorda que viveu aqueles momentos de violência “com muito receio”, visto que poderia ter sido muito pior. Os trabalhadores já não recebiam o seu pagamento havia sete quinzenas e os comerciantes já não tinham como continuar a vender fiado. “Chegou- -nos a notícia de que em Boca de Figueiral estavam os soldados, mas também que havia pessoas que tinham levado grogue para lá, e grogue em quantidade, e deram grogue de graça, foi o que me relataram; havia jovens soldados e havia também jovens da região e depois, sob o efeito do grogue, houve quem agredisse os soldados…”
O doutor Pitt entende que os jovens soldados, atacados, tinham o direito de se defender. “Dos tumultos resultou um morto (Adriano Santos), pessoa bem conhecida, jovem da Garça, e mais dois feridos.” E adianta que, posteriormente, “o levantamento do cadáver foi feito somente pela tropa, pelo menos eu não vi o cadáver, e normalmente cabe ao delegado de Saúde fazer o levantamento do cadáver, estando sozinho na ilha, cabia-me a mim fazer o levantamento do cadáver.”
O corpo de Adriano Santos, já sem vida, foi levado para a Ribeira Grande e depois para o Porto Novo. “Aos feridos, prestámos os primeiros socorros, rapidamente, e a vantagem é que a tropa tinha transporte e havia o barco atracado no Porto Novo e assim tiveram como transferi-los rapidamente para o hospital Baptista de Sousa, em São Vicente.”
Bota e boca’ no combate à lepra
Depois de voltar para o Porto Novo, Pitt Reitmaier regressou à Ribeira Grande, que continuava sem médico local. “O Porto Novo não tinha nada, havia muito pouco a fazer e estava bem cuidado pelos enfermeiros.” E por isso, montava na sua mota e ia visitar outras zonas da ilha, o PMI/PF de Chã de Parede, no sul, “que na época tinha mais 1000 habitantes do que o Porto Novo. Era no interior que estava a população do concelho, a vila era muito pequenina.”
E era depois, no final das consultas do PMI/PF, “do barulho das crianças”, que dava mais consultas de grávidas, etc. “E depois, tínhamos pela frente 7 horas de caminho para o Tarrafal do Monte Trigo, e de lá, com sorte, no bote para o Monte Trigo”. Aqui, conta, esperavam-nos cerca de 30 leprosos, de um total de 300, que havia em toda a ilha de Santo Antão.
Ao todo, havia em Cabo Verde cerca de mil leprosos quando Pitt Reitmaier chegou, doença hoje praticamente erradicada, restando, como explica raros casos. “Era um problema que obrigava a controlar na escola, junto das famílias, em Figueiras só num dia, identificámos sete casos, o que é bom, porque é só uma manchinha nas costas, sem feridas nem sequelas. E é o melhor que pode acontecer, porque uma criança, quando a mãe descobre que tem lepra, ela ajuda e insiste para ele tomar o remédio e ficam curadas.”
Explica como o seu meio de intervenção eram duas coisas: “Bota e boca, bota para caminhar até lá, onde estavam as pessoas, e boca para falar com elas.”
(interrompe a conversa telefónica, para cumprimentar um ‘fidge de panela’).
Mas, voltando ao 31 de Agosto, o nosso entrevistado recorda que no dia seguinte ao incidente, foi dar consulta em Garça, Chã de Igreja, como estava programado. “Falei com a polícia e com os outros e disseram-me que ainda era arriscado, que a tensão não tinha ainda acabado, mas as coisas com o tempo foram serenando. Depois, escrevi uma carta, junto com o enfermeiro da minha equipa, ao responsável militar no local (Lela Guerrilheiro) e ao ministro da Agricultura (João Pereira da Silva) que estava lá e era o responsável superior, por causa dos maus-tratos às pessoas apanhadas na confusão”.
“Muito tempo depois”, acrescenta o entrevistado do A NAÇÃO, “já na cidade da Praia, um dia, apanhei uma boleia do ministro dos Negócios Estrangeiros (Silvino da Luz), e fiquei a saber dele que a minha carta tinha chegado ao destinatário e que o seu conteúdo foi discutido.”
Joaquim Arena
Leia na íntegra na Edição 939 do Jornal A Nação, de 28 de Agosto de 2025
