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A compulsão privatizadora do Governo e a captura do Estado pelos interesses privados

Por: João Serra*

O Governo em funções desde 2016 tem prosseguido um processo de privatizações que, em vez de responder a uma estratégia de desenvolvimento coerente, se apresenta como uma compulsão ideológica, sem visão de longo prazo, sem transparência e com consequências económicas, sociais e institucionais de grande gravidade. Em vários artigos de opinião, inclusive publicados neste semanário, tenho alertado para a intenção do Governo de vender praticamente todas as empresas públicas ainda existentes, sem que tenha havido qualquer debate nacional sério capaz de definir o que deve permanecer sob controlo do Estado e o que poderia, eventualmente, ser entregue a privados. Essa ligeireza, motivada mais por dogmas e intenções ocultas do que por análise racional, tem-se traduzido em negócios malconduzidos, contratos lesivos e numa crescente perda de confiança na governação.

A experiência cabo-verdiana recente demonstra que privatizar a qualquer custo, nomeadamente por obstinação ideológica, é um erro. Não basta proclamar os benefícios teóricos do mercado quando, na prática, se aliena património público sem projetos consistentes e sem salvaguarda dos interesses nacionais. O que se verifica é a repetição de um padrão: pressa em privatizar, ausência de concursos transparentes, falta de fiscalização e opacidade nos termos contratuais. Além disso, tem havido ausência de informação, o que dificulta o escrutínio público.

O caso da TACV é paradigmático. Gerida desde 2017 pelo grupo Icelandair e privatizada em 2019, com a venda de 51% do capital da empresa por ajuste direto e por apenas 1,3 milhões de euros, a transação foi apresentada pelo Governo como “um marco da reestruturação económica dos transportes aéreos em Cabo Verde”. Porém, a TACV afundou rapidamente e os investidores estrangeiros nunca concretizaram as suas obrigações contratuais, designadamente a entrega de 11 aeronaves, obrigando o Estado a renacionalizá-la em 2021. Na sequência do rompimento unilateral do contrato, pagou-se à Icelandair uma indemnização no valor de 1,46 milhões de dólares, montante superior aos 1,3 milhões de euros encaixados com a venda dos 51%. Longe de aliviar o Estado, a privatização e a manutenção da empresa em funcionamento após a renacionalização estão a revelar-se um grande sorvedouro de recursos: de 2017 à presente data, o Estado já terá avalizado e garantido compromissos financeiros relacionados com a TACV no valor aproximado de 28,5 milhões de contos (cerca de 260 milhões de euros), que irá, certamente, engordar ainda mais a dívida pública. A privatização da TACV, apresentada como solução milagrosa, acabou por se transformar num dos maiores fracassos da história económica recente do país.

Outro exemplo revelador é a concessão do transporte marítimo interilhas à CV Interilhas, em 2019. Anunciada como a solução para um problema histórico, prometia navios modernos, ligações regulares e previsíveis, condições de conforto e segurança para passageiros e mercadorias. A realidade foi o oposto: a empresa nunca adquiriu os cinco novos navios previstos, recorreu a embarcações velhas e alugadas, sujeitas a avarias constantes, e nunca cumpriu as frequências mínimas contratadas. Em consequência, passageiros ficam retidos em terra, mercadorias apodrecem nos portos e emigrantes perdem dias de férias à espera de barcos que não chegam. Em vez de fiscalizar, o Governo aceitou cláusulas lesivas e ambíguas que hoje custam indemnizações milionárias ao erário público, que podem ascender a várias dezenas de milhões de euros. Para um país pequeno e com recursos limitados, trata-se de uma fatura colossal. Esta concessão, descrita como um desastre económico e social, expõe a ingenuidade política e a incapacidade do Governo em negociar e defender o interesse público nos processos de privatização.

A mesma falta de transparência marcou a concessão da gestão dos aeroportos à multinacional francesa VINCI. O processo não teve concurso público e incluiu um escândalo sem precedentes: em outubro de 2017, o Governo e a VINCI assinaram um MoU (Memorando de Entendimento) para a empresa efetuar, em prazo curto, um estudo e propor um modelo de gestão. Muitos críticos destacaram que a mesma empresa que fez o estudo mais tarde se tornou concessionária. Ou seja, a VINCI tornou-se juíza em causa própria, definindo os termos que melhor serviam os seus interesses, enquanto o Estado abdicava de qualquer mecanismo independente de avaliação. É difícil encontrar exemplo mais flagrante de captura de um processo público por um operador privado. Em vez de defender os cabo-verdianos, o Governo entregou a gestão de uma infraestrutura estratégica a uma multinacional em condições de opacidade e favorecimento, que já minam a confiança no Estado.

Mas talvez o caso simbolicamente mais revelador da promiscuidade entre interesses públicos e privados tenha sido a alienação de ações da Caixa Económica. O responsável pela unidade encarregada das privatizações foi detido pela polícia por se ter envolvido na compra das mesmas ações cuja venda coordenava, configurando um claro conflito de interesses em que o vendedor se tornava simultaneamente comprador. Este episódio, para além de ferir a legalidade, expõe a degradação ética que contamina o atual modelo de privatizações, transformando processos que deviam ser transparentes e competitivos em negócios de bastidores, em benefício de alguns e em prejuízo do interesse público.

Os efeitos acumulados destas práticas são devastadores. No geral, as privatizações não ajudaram a melhorar os serviços básicos de transporte nem a reduzir a dívida pública, como prometido, e tampouco dinamizaram o mercado de capitais, que continua praticamente inexistente. As escassas receitas obtidas desapareceram no financiamento de défices correntes e os compromissos assumidos têm agravado a insustentabilidade financeira do país. No plano social, os cidadãos veem os serviços degradarem-se: transportes imprevisíveis, tarifas elevadas, mobilidade interna comprometida. E, no plano institucional, a confiança nas instituições é corroída pela opacidade, pelos contratos lesivos e pelos escândalos de conflitos de interesse.

Tudo somado, é evidente que a compulsão privatizadora do Governo tem custado demasiado cara ao país e aos cabo-verdianos. Cada nova privatização ou concessão confirma o mesmo padrão: decisões apressadas, falta de transparência, ausência de fiscalização, captura do processo por interesses privados e, no fim, mais encargos para o Estado e mais sacrifícios para os cidadãos. 

Privatizar não é, em si, o problema. O problema é privatizar sem critério, sem debate, sem ética e sem salvaguarda do interesse nacional. É exatamente isso que tem acontecido em Cabo Verde. O preço dessa compulsão está hoje refletido no potencial aumento da dívida pública, na degradação dos serviços, na perda de confiança dos cidadãos e na erosão da soberania económica. E esse preço, já insustentável, continuará a crescer se o país persistir neste caminho de leviandade e captura do Estado.

Praia, 30 de agosto de 2025

*Doutorado em Economia/Blog: www.economianaserra.blogspot.com)15

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