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Monumento à democracia e liberdade

Por: Germano Almeida

 Enquanto o presidente da República de Cabo Verde percorria Portugal num peditório quase pessoal a favor das gentes de S. Vicente atingidas pelo maior desastre natural de que há memória, o Governo de Cabo Verde persistia na insensatez de alocar 150 mil contos na construção de um monumento dedicado à liberdade e democracia.

A primeira das situações não é de fácil entendimento. Com efeito, nenhum cabo-verdiano, estou seguro que incluindo aqueles que serão os possíveis beneficiários dessa presidencial mão estendida, têm gostado de ver o representante da sua República nessa posição de pedinte quase exposto à caridade pública.  

 Vamos admitir que a dra Débora Carvalho está querendo seguir o exemplo da Evita Perón nessa azáfama a favor dos pobres deserdados (Evita chamava-lhes de “os meus grasitas”). Porém, é certo é sabido que Perón nunca a acompanhou nos seus frenéticos peditórios pelo país, quanto mais no estrangeiro. Isso porque há uma dignidade que deve forçosamente acompanhar determinados cargos e que nem o titular tem o direito de menosprezar. Na Boa Vista já nos ensinavam desde pequeninos, que quem não quer a pátria não quer a bandeira. Estatuto e papel estão indissoluvelmente ligados, sobretudo quando se exerce a função de presidente da República. Ora é preciso dizer que o presidente vulgarizou o seu cargo ao posar para fotografia no desempenho de uma missão que centenas no país e milhares espalhados pelo mundo estão desempenhando com eficiência e vantagem.

Mas, enquanto o presidente da República viaja por Portugal em busca de, não digo tostões, mas pelo menos de alguns euros, o Governo de Cabo Verde insiste na insensibilidade de alocar 150 mil contos num objeto a que chama de monumento à liberdade e à democracia.

Tenho lido acérrimos defensores desse objeto, mas também dos que são contra. Diria que num ano de boas águas, com fartura de comida na terra, diante desse arrojo descomedido podia-se simplesmente torcer a cara, mas dizer, está bem, já que insistem nessa coisa que não nos aquece nem arrefece porque não nos trará por si só nenhumas melhorias, quer em termos de liberdade, quer em termos de democracia, exceção feita àqueles que viverão por baixo do monumento catando as suas migalhas, vamos deixar gastar esse balúrdio sem protesto. Porém, num ano como este atual, ainda no mesmo mês em que uma desgraça inolvidável praticamente destruiu S. Vicente, uma desgraça tão violenta que obrigou o mundo todo a solidarizar-se com este povo infeliz juntando comida, roupa, agasalhos, num apelo cada vez mais crescente no sentido de cuidar contra as epidemias porque o povo coitado está na rua, está entregue à graça de um Deus que parece tê-lo abandonado, é neste momento em que mais que todo o mundo devíamos ser nós a nos solidarizarmos com o povo de S. Vicente, como aliás temos feito dentro das nossas possibilidades, mas dizia, é nesse momento que o governo de Cabo Verde se dispõe a gastar 150 mil contos num monumento à liberdade e democracia, quando nenhum monumento honraria melhor a democracia que nós mesmos cuidar dos pobres e desvalidos da nossa terra em vez de deixa-los entregues à caridade internacional.

Quando li acerca da alocação dessa brutal quantia à execução de um monumento num país com o grau de pobreza, na maioria dos casos mais miséria do que se vê na realidade, como é Cabo Verde, pensei, alguém tem que alertar esse Governo a pôr os pés no chão das ilhas, alguém tem que lhes aconselhar a ler Chiquinho, Famintos, Flagelados do vento leste, lembrar-lhes que este país não é ainda muito diferente do que esses livros descrevem, como aliás S. Vicente acabou por mostrar na inolvidável noite de 11 de Agosto. Mas depois analisei um a um os membros do Governo. São todos pessoas cultas que leram esses livros e certamente muitos outros, conhecem Cabo Verde e a sua história dolorosa, portanto não estão inocentes, sabem bem o que estão a fazer, é uma escolha, é uma opção que em última instância proclama S. Vicente fora do conjunto e das preocupações do Governo de Cabo Verde e por isso entregue à caridade internacional. Só pode ser esta a explicação! Porque de todas as explicações que li ou ouvi a tentar justificar esse ato tresloucado, essa não dita opção parece-me a única explicação para semelhante desnorte.

Mas essa decisão é de tal gravidade que aqueles que, por funções exercidas neste país, consideramos os senadores da República, não podem alijar a responsabilidade que sobre eles impende, particularmente num momento e circunstância em que o presidente da República opta por ser omisso. Certamente que se esperava dele não só mostrar, mas também falar para todo o povo ouvir, a total contradição entre o facto de ele estar de mãos estendidas à caridade internacional para ajudar a devastada ilha de S. Vicente, ao mesmo tempo que o Governo quer dispor de 150 mil contos para construir um monumento para celebrar o sonho de uma realização que, passados 50 anos sobre a independência nacional, ainda estamos inutilmente buscando: liberdade e democracia! 

E nesta incompreensível ausência do mais alto representante da República, é imperativo exortar os nossos antigos dirigentes, presidentes incluídos, a tomar a palavra sobre essa magna questão, para que as futuras gerações saibam quem aprovou e quem foi contra. Abster-se é demasiadamente cobarde.    

Nunca se falou tanto em liberdade e democracia em Cabo Verde como depois da abertura política de 1990. Mas é como se quanto mais se fala, mas ela se afasta do povo das ilhas, sobretudo porque a nossa sociedade civil do Facebook não passa disso mesmo. Por isso os governantes cabo-verdianos vivem despreocupados à frente de um povo amorfo, um povo de criticadores, porém incapazes de se unirem para um objetivo de interesse comum porque todos receiam ficar de mal com aqueles que estão no poder e de quem dependem ou podem vir a depender. Ora não se pode aspirar à liberdade e ao exercício da democracia enquanto o nosso principal instinto persistir em ser o instinto de sobrevivência a qualquer preço. 

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