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A insustentável leveza da liderança de instituições públicas em Cabo Verde

Por: João Serra

Em Cabo Verde, fala-se muito de liderança, mas pratica-se pouco. O discurso sobre o mérito, a eficiência e a responsabilização tornou-se um exercício retórico que esconde uma realidade bem mais dura: a de um país onde os lugares de direção e chefia são, demasiadas vezes, ocupados não pelos mais capazes, mas pelos mais convenientes. Instalou- -se uma cultura de liderança marcada por um fraco comprometimento com as instituições e com o serviço público. O resultado é uma administração pública e um tecido institucional presos num ciclo de inércia, improvisação e mediocridade, que mina silenciosamente a confiança dos cidadãos e compromete o desenvolvimento do país. Ou seja, falta ao país uma liderança com propósito, que entenda o tempo como recurso estratégico e o cidadão como destinatário último da ação pública. Naturalmente, existem bons líderes e instituições públicas bem geridas, mas são exceções à regra.

Peter Drucker, considerado o pai da gestão moderna, insistia que o verdadeiro líder é aquele que transforma o potencial humano em desempenho. A liderança é uma função moral antes de ser técnica, o que implica servir e não ser servido, criar sentido e não apenas impor regras. Contudo, em Cabo Verde, a liderança pública tende a ser vista como um privilégio e não como um dever. Os cargos são, muitas vezes, encarados como recompensas pessoais ou instrumentos de poder, e não como oportunidades para transformar a realidade. Este desvio ético é, talvez, o maior obstáculo à construção de instituições sólidas e sustentáveis.

O Governo, enquanto gestor o Estado, tem aqui responsabilidades incontornáveis. É ele que dá o tom e o exemplo; porém, lamentavelmente, o tom dominante tem sido o de “jobs for the boys”, isto é, o da complacência com o amiguismo, o compadrio e o favoritismo, em detrimento do mérito. Ora, o poder político, que deveria ser o garante da meritocracia, transformou-se no seu maior obstáculo.

Drucker dizia também que a primeira tarefa de um gestor é gerir o tempo, pois é o único recurso verdadeiramente irrecuperável. Em Cabo Verde, a relação com o tempo é uma das marcas mais visíveis da crise de liderança: o cumprimento de prazos é relativizado, as decisões são adiadas e o tempo – esse recurso finito e estratégico – é desperdiçado em reuniões estéreis e processos burocráticos que servem mais para adiar do que para resolver. Como consequência, os atrasos são sistemáticos, as respostas tardam, a palavra dada perde valor e a sensação de urgência – motor das sociedades produtivas – parece ausente, instalando-se uma crise de confiança transversal. O país habituou-se a funcionar com um sentido distorcido de normalidade, onde a lentidão e a ineficiência são aceites como inevitáveis.

A isto soma-se outro problema estrutural: a cadeia de comando existe formalmente, mas, na prática, é fraca, pouco clara e pouco funcional. Sem uma cadeia de comando conhecida, respeitada e efetiva, nenhuma organização pode funcionar com eficiência; a liderança perde autoridade, as decisões diluem-se e a responsabilidade evapora-se no labirinto institucional. Em demasiadas instituições cabo- -verdianas, o comando é difuso, as ordens contraditórias e as responsabilidades indefinidas. Há chefias que decidem sem poder, e outras que têm poder, mas evitam decidir. Esta diluição da autoridade mina a confiança interna e destrói a noção de accountability – um conceito ainda frágil, mas essencial à boa governação.

Outro traço preocupante da liderança cabo-verdiana é a insensibilidade às críticas construtivas.

Em vez de encarar o feedback como oportunidade de melhoria, muitos líderes reagem com desconfiança, quando não com hostilidade. A crítica é vista como afronta pessoal, não como instrumento de progresso. Esta atitude cria um ambiente de medo e conformismo, onde os profissionais mais competentes optam pelo silêncio para evitar represálias ou o isolamento. Não é raro ver quadros altamente qualificados, com experiência e mérito comprovado, colocados “na prateleira” por razões políticas, pessoais ou simplesmente por não se mostrarem submissos. Trata-se de um desperdício inaceitável de talento e de capital humano num país que, paradoxalmente, clama por quadros competentes e inovadores. A exclusão dos que pensam de forma independente ou ousam discordar é uma das formas mais perniciosas de empobrecimento institucional e ético.

A ausência de mecanismos eficazes de avaliação de desempenho e de responsabilização agrava este cenário. Raramente se exigem resultados concretos, e menos ainda se aplicam consequências pelo incumprimento. O Estado tolera e, por vezes, recompensa a mediocridade e o descaso, criando um ambiente onde a excelência é exceção, a apatia regra e a impunidade norma.

Esta visão distorcida tem custos profundos. A gestão pública cabo-verdiana tornou-se demasiadamente imprevisível: as decisões dependem mais do humor do dirigente do que de critérios técnicos; os processos são lentos, mas as desculpas são rápidas; os planos abundam, mas a execução rareia. O país vive uma espécie de paralisia suave, onde todos sabem o que está errado, mas poucos se atrevem a corrigir.

Drucker alertava ainda que «a cultura come a estratégia ao pequeno-almoço». Em Cabo Verde, essa frase assume um significado particularmente relevante: por mais que se anunciem reformas e planos ambiciosos, nada mudará se a cultura de liderança permanecer prisioneira da complacência e do favoritismo. Um país pequeno, com recursos limitados, não pode dar-se ao luxo de desperdiçar talento nem de tolerar ineficiências. Precisa de líderes que compreendam que o tempo é um ativo precioso, que a responsabilidade é indelegável e que a autoridade se constrói pelo exemplo, não pela imposição.

É urgente, portanto, promover uma nova geração de líderes em Cabo Verde – líderes com ética, visão e sentido de missão. Líderes que saibam escutar, motivar e decidir. Líderes que não temam o contraditório e que valorizem o mérito acima da conveniência. Só com uma liderança comprometida com resultados e com o bem-comum será possível transformar as instituições e devolver aos cabo-verdianos a confiança num Estado eficiente, justo e orientado para o futuro. Como diria Drucker, o futuro não se prevê: constrói-se. E Cabo Verde só o poderá construir com líderes capazes e com coragem para fazer diferente e melhor.

A liderança que Cabo Verde precisa não é a que manda, mas a que serve. Não é a que se protege com bajuladores, mas a que se rodeia de competentes. Não é a que teme a crítica, mas a que a procura.

Para terminar:

Enquanto persistirem as práticas de compadrio, o descaso para com a meritocracia e o desrespeito pelo tempo e pelo cidadão, o país continuará refém de lideranças frágeis e de instituições ineficazes.

Enquanto o país escolher líderes que servem o poder em vez de servir o interesse público, continuará a desperdiçar o seu maior recurso: as pessoas; por isso, o desenvolvimento do país fica cada vez mais adiado.

Praia, 25 de outubro de 2025

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