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Novembro: o mês em que a palavra desembarca em Cabo Verde

Por: Karina de Fátima Gomes*

Há meses que parecem feitos de palavras. Novembro será um deles. Em poucos dias, a ilha de Santiago receberá dois grandes encontros que farão da leitura o centro das conversas, das políticas e das esperanças: o CILPE 2025, na Praia, e o Ler África Ibero-América, no Tarrafal.

De um lado, a Universidade de Cabo Verde acolherá o Congresso Internacional da Língua Portuguesa e Espanhola que reunirá linguistas, escritores e representantes de ministérios e instituições da CPLP e da OEI para refletir sobre o multilinguismo, a interculturalidade e a cidadania. Do outro, o antigo Campo de Concentração do Tarrafal se transformará, de 13 a 16 de novembro, em território simbólico da resistência e da utopia, acolhendo o Ler África, com autores como Mia Couto e Paulina Chiziane (Moçambique), Germano Almeida (Cabo Verde), Ana Maria Gonçalves (Brasil) e tantos outros que reafirmam a literatura como gesto de liberdade e memória.

Esses dois eventos convergem num mesmo ponto: o reconhecimento da leitura como ato de cidadania. Como lembra Carlos Nuno Granja, “a simples alfabetização escolar já não é suficiente para alavancar o prazer pela leitura”. Ler é mais do que decifrar, é compreender o mundo e nele se inserir. O autor lembra que “o indivíduo alfabetizado aprendeu a ler e a compreender, mas será alfabetizado aquele que não compreende e não consegue interpretar um texto?”, e completa: “a pessoa não tem noção disso porque ignora as capacidades que a compreensão do texto proporciona.”

É por isso que formar leitores é uma tarefa coletiva. O escritor português insiste: “as escolas devem ter bibliotecas pujantes e dinamizadoras, com acesso a livros de qualidade, bem selecionados”, e é fundamental “existirem diálogos abertos entre professores e alunos, que falem sobre as histórias e as narrativas, para que os alunos tenham confiança nas suas escolhas.” Em outras palavras, não basta ensinar a ler: é preciso cultivar o gosto, a curiosidade, o diálogo, o prazer de se ver refletido nas páginas e de ver o outro existir nelas também.

Em A arte de gostar de ler, Granja recusa as fórmulas fáceis: “Não havendo conceitos lineares no que toca à prática, se os diversos agentes escolares tiverem paixão pelos livros e pela leitura, os resultados serão muito mais gratificantes.” Ele retoma Aristóteles, para quem “a leitura é o caminho mais curto para o conhecimento”, e ecoa C.S. Lewis, quando este diz: “Um conto infantil que seja apenas para ser lido por crianças não é bom conto infantil em absoluto.” Essas vozes antigas e contemporâneas se unem para afirmar que a literatura amplia a imaginação, fortalece o pensamento crítico e estimula o afeto — porque ler é, sobretudo, uma forma de viver.

A leitura literária, defende Granja, é “um caminho de promoção da leitura, de inculcar o prazer de ler, de olhar para o livro com o sentido lúdico dos seus contextos.” Ler é um ato de permanência num tempo que nos empurra para o efêmero. É resistência contra a pressa e contra o silêncio imposto. E, como escreveu o brasileiro Carlos Drummond de Andrade, “a leitura é uma fonte inesgotável de prazer, mas, por incrível que pareça, a quase totalidade não sente esta sede.”

Daí a urgência de cultivar o desejo de ler desde cedo. Granja recorda: “Sabendo que muitas crianças chegam à idade escolar sem qualquer acesso ao livro, caberá à escola compensar este défice, que cria desigualdades no início da escolaridade.” É preciso que cada criança cabo-verdiana encontre um livro que a espere — e que o país, como comunidade, construa pontes para que esse encontro aconteça.

Nesse sentido, George Bernard Shaw recomenda: “Tenha por norma nunca dar a uma criança um livro que nunca leria.” Ler com as crianças, escolher com elas, dar- -lhes voz sobre o que leem: eis a base da formação leitora que gera autonomia, confiança e pensamento crítico.

Temos nos empenhado, em Cabo Verde, em torno da palavra e na construção de uma sociedade leitora. O Festival Literatura-Mundo do Sal, os Encontros de Escritores de Língua Portuguesa, os Simpósios de Literatura Infantil e Juvenil de Cabo Verde, o Festival Morabeza e a Grande Feira do Livro da Biblioteca Nacional, assim como projetos apoiados pelo Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP), pelo Instituto Guimarães Rosa e pelo Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, I.P., mostram que estamos no caminho certo!

Como afirma Granja, “a leitura ajuda-nos a consolidar as ideias, a ortografia, os pensamentos e a técnica”, e o seu exercício “reduz a ansiedade, estimula a criatividade e aumenta, igualmente, o nível de empatia.” Ele defende que “não há como escamotear as diversas valências da leitura para a formação do indivíduo, replicando-se desta forma na construção de uma sociedade justa e interventiva.

Essas palavras encontram ressonância profunda no que se prepara para novembro em Cabo Verde. O CILPE reforça que o diálogo entre línguas é o alicerce da convivência democrática. O Ler África mostra que o livro é instrumento de reconciliação com a memória e com a esperança. Ambos se unem num só horizonte: o da palavra que atravessa fronteiras e nos devolve à humanidade.

Como lembrava Marcel Proust, “talvez não haja dias da nossa infância que tenhamos vivido tão plenamente como aqueles que passamos com um livro preferido.” Que esse novembro de encontros e leituras nos devolva o gosto por esses dias… os dias lentos, os dias de partilha, os dias em que um livro se abre e o mundo se abre junto com ele.

Que o CILPE e o Ler África tragam luz à nossa consciência de que formar leitores é formar cidadãos, e que o livro, pequeno objeto de papel, é uma das mais poderosas ferramentas de transformação que já inventamos.

*Leitora do Instituto Guimarães Rosa Universidade de Cabo Verde

 

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