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Entre Mises e Marx: os dilemas ideológicos da economia cabo-verdiana

Por: Eurico Mendes*

A economia cabo-verdiana, pela sua natureza insular, pequena e aberta, situa-se de forma singular entre duas correntes centrais do pensamento económico moderno: o liberalismo de Ludwig von Mises e o socialismo crítico de Karl Marx. Cada uma oferece uma perspetiva distinta para interpretar os desafios do desenvolvimento, a dependência externa e o papel do Estado na promoção do bem-estar coletivo.

Para Mises, o progresso depende da liberdade individual, da propriedade privada e do funcionamento eficiente dos mercados. O capitalismo é visto como cooperação voluntária em benefício mútuo. Quando o Estado intervém excessivamente — controlando preços, salários ou crédito — cria distorções que enfraquecem o dinamismo produtivo. O desenvolvimento passa, portanto, por incentivar a iniciativa privada, o investimento estrangeiro e o empreendedorismo local.

Já Marx interpreta o capitalismo como um sistema marcado pela concentração de riqueza e pela exploração do trabalho, onde o Estado serve aos interesses das classes dominantes. A emancipação económica exige transformações estruturais e maior intervenção pública na redistribuição, por forma a eliminar desigualdades e promover justiça social.

Em Cabo Verde, essas visões cruzam-se de forma visível. O país combina políticas liberais — que favorecem investimento estrangeiro, abertura comercial e estabilidade macroeconómica — com forte presença estatal em setores estratégicos como energia, transportes, educação e saúde. Esse equilíbrio reflete o dilema entre eficiência económica (Mises) e equidade social (Marx).

A dependência externa é outro campo de confronto. Para Mises, a integração global é fonte de prosperidade; para Marx, forma de subordinação neocolonial. Cabo Verde, ao depender de ajuda internacional, remessas e turismo, ilustra o desafio de construir uma economia simultaneamente aberta e soberana.

Desde a independência, em 1975, a economia nacional tem procurado um caminho intermédio. A primeira fase, de orientação socialista, via o Estado como motor do desenvolvimento e promotor da coesão social. Sem recursos naturais e com fraca base produtiva, apostou-se na planificação central, criação de empresas públicas em setores estratégicos – energia, transportes, comunicações, banca e comércio – e regulação de preços e importações. Houve avanços em educação e saúde, mas o crescimento manteve-se modesto e a dependência externa agravou-se.

Nos anos 1990, com o multipartidarismo e a vitória do MpD, iniciou-se a viragem liberal: privatizações, liberalização de preços e comércio, abertura ao investimento estrangeiro e valorização do setor privado. O Estado passou de produtor a regulador, consolidando a estabilidade macroeconómica, mas enfrentando novos desafios sociais, como desemprego e desigualdade.

A paridade cambial com o escudo português e, consequentemente, com o euro (1 Euro / 110,265 ECV), instituída a partir de 1 de abril de 1998, garantiu previsibilidade, embora tenha limitado a autonomia monetária — expressão do equilíbrio tenso entre liberdade de mercado e dependência externa.

Desde os anos 2000, Cabo Verde evoluiu para uma “hibridização ideológica”. O Estado mantém papel regulador e promotor de políticas sociais, enquanto o discurso dominante é liberal, centrado na competitividade, boa governação e atração de capitais. A coexistência de valores liberais e socialistas é patente na educação e saúde públicas, na política fiscal equilibrada e no mercado de trabalho, que combina flexibilidade e emprego público.

Apesar dos progressos, o país continua dependente do exterior: importa mais de 80% dos bens que consome e mantém défice estrutural. Persiste, assim, o dilema central entre Marx e Mises — reforçar o papel do Estado na criação de bases produtivas internas ou apostar ainda mais na abertura e na eficiência do mercado.

Em última análise, o dilema entre Mises e Marx em Cabo Verde é mais prático do que teórico: o país precisa do mercado para gerar riqueza, mas também do Estado para garantir coesão social. A síntese entre eficiência liberal e sensibilidade social poderá constituir a chave de uma via cabo-verdiana de desenvolvimento.

Referências Bibliográficas
• Marx, K. (1867). O Capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2013.
• Mises, L. von. (1959). As Seis Lições. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010.
• Hayek, F. A. O Caminho da Servidão. Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010.
• Keynes, J. M. (1964). A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda. Fundo de Cultura.
• Piketty, T. (2014). O Capital no Século XXI. Intrínseca.
• Carreira, A. (1972). Cabo Verde: Formação e Extinção de uma Sociedade Escravocrata (1460–1878). Lisboa: Centro de Estudos de Antropologia Cultural.
• Banco de Cabo Verde (BCV). Relatórios e Contas Anuais.
• Instituto Nacional de Estatística de Cabo Verde (INE-CV). Contas Nacionais e Estatísticas do Comércio Externo.

*Economista e Bancário

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