
Por: Jorge Lopes*
Quando a indignação já não é suficiente e o poder deixa de escutar, a democracia corre o risco de se tornar um exercício de aparência.
Em Cabo Verde, a responsabilização política — um dos pilares da ética democrática — tem vindo a enfraquecer perigosamente. Erros graves, falhas de governação e escândalos públicos sucedem-se sem que daí resultem consequências políticas ou morais. A prestação de contas tornou-se exceção, a demissão deixou de ser gesto de dignidade e a impunidade converteu-se em hábito. O resultado é um país que conserva as formas da democracia, mas perde gradualmente o seu conteúdo ético.
O sentido profundo da responsabilidade
Em qualquer democracia madura, a responsabilização política é mais do que um ato formal: é a expressão da consciência ética do poder. Quem governa deve responder pelas suas decisões e omissões, não apenas perante a lei, mas sobretudo perante o juízo público.
A política, no seu sentido mais elevado, é um exercício de confiança. Governar é servir — e servir implica responder. Quando se apaga este vínculo moral entre governante e cidadão, o Estado perde autoridade e a democracia perde alma.
Quando a arrogância suplanta a ciência e o escrutínio adormece
Quando a arrogância e até alguma ignorância desafiam e atropelam a ciência, a técnica e as boas práticas nacionais e internacionais; quando a humildade é acantonada e a experiência é vista como obstáculo, os prejuízos são avultados — para o erário público, para a confiança institucional e para a própria democracia.
O escrutínio político, ainda que insipiente, é frequentemente ignorado, e o escrutínio formal, exercido pelas instituições de soberania da República, parece hibernado numa sonolência profunda.
Esta cultura de autossuficiência e desresponsabilização gera decisões mal calibradas, projetos mal concebidos e políticas públicas inconsistentes, cujos custos recaem sobre os contribuintes e sobre a credibilidade do Estado.
A ausência de responsabilização transforma o erro em rotina e a rotina em norma.
O desrespeito pelo conhecimento técnico e pela experiência institucional traduz-se em políticas improvisadas, planos mal fundamentados e decisões tomadas em função de interesses conjunturais e não do interesse público.
A consequência é o desperdício de recursos e a repetição de erros evitáveis.
A arrogância política, quando aliada à ignorância técnica, não apenas enfraquece a eficiência do Estado, mas corrói silenciosamente o próprio princípio da boa governação.
A banalização da falha e a erosão do escrutínio
Nos últimos anos, Cabo Verde tem assistido a uma perigosa banalização da falha política. Casos que, noutras democracias, provocariam explicações públicas, investigações parlamentares ou até demissões, passam entre nós quase despercebidos.
O que outrora causaria indignação coletiva, hoje manifesta-se de forma tímida, fragmentada e insuficiente para gerar pressão efetiva.
A sociedade reage, sim — mas sem contundência.
E quando reage, o Governo faz orelhas moucas, as instituições refugiam-se no silêncio, e o Parlamento raramente exerce o seu papel de fiscalização política com a firmeza necessária.
O resultado é que a indignação, ainda que real, não produz efeito, e começa a transformar-se em resignação.
Uma resignação perigosa, porque abre espaço à indiferença — e onde há indiferença, a democracia adoece.
Comunicação social: o elo enfraquecido da fiscalização democrática
A comunicação social é, por natureza, um dos mais poderosos instrumentos de responsabilização política.
Mas em Cabo Verde, o jornalismo atravessa um momento difícil, marcado por limitações estruturais, recursos escassos e uma débil capacidade de investigação e escrutínio.
Falta-lhe, muitas vezes, espaço e condições para o jornalismo de profundidade — aquele que confronta, investiga e obriga o poder a explicar-se.
Os fenómenos e comportamentos que deviam suscitar responsabilização passam, demasiadas vezes, quase ao lado da agenda mediática.
E quando, excecionalmente, o jornalismo cumpre o seu papel de defesa do estatuto editorial e da independência da informação pública, a reação do sistema é, por vezes, punitiva — em vez de reconhecer e proteger a autonomia profissional, procura-se castigar quem defende princípios.
E quando o exercício legítimo da liberdade de imprensa é punido, e o silêncio institucional é conivente, a mensagem transmitida é clara — o poder prefere a obediência ao escrutínio.
Proteger o jornalismo não é proteger os jornalistas — é proteger o direito dos cidadãos à verdade. Sem imprensa livre, o poder não é vigiado, a verdade não circula e a democracia perde oxigénio.
Entre o jurídico e o ético: o equívoco persistente
Uma das causas mais profundas deste declínio é a confusão entre responsabilidade política e responsabilidade jurídica.
Nem toda a falha política é crime, mas toda a falha política tem consequência ética.
A responsabilidade política não depende de tribunais, mas de valores.
É o dever moral de prestar contas, mesmo quando não há violação formal da lei.
Reduzir a política a um mero exercício de legalidade é amputar-lhe o seu conteúdo ético e a sua dimensão de serviço público.
O custo da indiferença
A ausência de responsabilização política cobra um preço alto: enfraquece a confiança nas instituições, corrói o sentido de Estado e distancia os cidadãos da vida pública.
Quando o erro não tem consequência, a mediocridade instala-se.
Quando a verdade deixa de ser exigida, a mentira torna-se rotina.
E quando o poder se habitua a não prestar contas, a democracia degenera em espetáculo e formalismo.
A indiferença é, por isso, a forma mais subtil de desistência cívica — o momento em que o cidadão deixa de acreditar que vale a pena exigir.
O caminho de regresso à ética da responsabilidade
Recuperar a responsabilização política em Cabo Verde não exige novas leis, mas sim novas atitudes. É preciso restaurar a cultura da transparência e do dever de explicação, fortalecer os mecanismos de fiscalização parlamentar, dotar o jornalismo de meios e liberdade efetiva, e cultivar entre os cidadãos a coragem de exigir.
A democracia só amadurece quando o poder teme o escrutínio e o cidadão se recusa a ser espectador. A política, para voltar a ser nobre, precisa reencontrar o seu centro moral: o sentido de responsabilidade perante o povo.
É preciso revalorizar o mérito e a competência na escolha de dirigentes públicos, substituir a lógica partidária pela lógica da idoneidade e exigir que o exercício do poder se paute por resultados mensuráveis e transparentes.
Só assim a confiança entre governantes e governados pode ser reconstruída.
Conclusão:
Cabo Verde construiu uma das democracias mais respeitadas da África contemporânea.
Mas nenhuma democracia sobrevive se perder o seu sentido ético e a coragem de corrigir-se a si própria.
A responsabilização política é o elo que liga o poder à legitimidade, e o cidadão à confiança.
Sem ela, restam apenas eleições periódicas e discursos ensaiados — sem verdade, sem consequência e, sobretudo, sem esperança.



