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2016 – 2025: uma década sem criação líquida de emprego em Cabo Verde

 

 

 

 

 

Por : João Serra

O Governo, eleito em 2016 e reconduzido em 2021, prometera criar 45.000 novos postos de trabalho durante o primeiro mandato. No entanto, em cerca de nove anos de governação, foram criados uns míseros 6.054 empregos líquidos – ou seja, 673 por ano, muito aquém dos 9.000 anuais prometidos.

Em Cabo Verde, o debate em torno da criação de emprego tem sido marcado por uma dissonância entre os indicadores macroeconómicos e a realidade do mercado de trabalho. O discurso oficial enfatiza taxas de crescimento do PIB, percentagens de redução do desemprego e séries estatísticas que sugerem prosperidade. Contudo, uma análise mais detalhada revela que a evolução quantitativa do emprego não corresponde a uma transformação qualitativa capaz de assegurar trabalho decente, formal e protegido. A narrativa de progresso económico, frequentemente sustentada em indicadores agregados, contrasta com a persistência de fenómenos estruturais como a elevada informalidade, o subemprego e as desigualdades territoriais e de género.

Os dados das Estatísticas do Mercado de Trabalho relativos ao 1.º semestre de 2025, divulgados em outubro p.p. pelo INE, ilustram de forma clara este paradoxo. Apesar de se registar um crescimento do emprego de 7,3% e uma redução da taxa de desemprego para 7,5%, face ao mesmo período de 2024, a análise longitudinal revela uma realidade menos animadora: a população empregada passou de 194.485 em 2015 para 228.139 no 1.º semestre de 2025 – um acréscimo líquido de apenas 6.054 indivíduos, nesse período. Este aumento é manifestamente insuficiente para responder às necessidades de uma população jovem, em crescimento e com aspirações legítimas de inclusão no mercado de trabalho. Recorde-se que o Governo, eleito em 2016 e reconduzido em 2021, prometera criar 45.000 novos postos de trabalho durante o primeiro mandato. No entanto, em cerca de nove anos de governação, foram criados uns míseros 6.054 empregos líquidos – ou seja, 673 por ano, muito aquém dos 9.000 anuais prometidos.

A teoria económica clássica, nomeadamente a Lei de Okun, pressupõe uma correlação positiva entre crescimento económico e criação de emprego. No entanto, no contexto cabo-verdiano, essa relação mostra-se frágil. O crescimento do PIB tem sido impulsionado sobretudo por setores como o turismo e os serviços, cuja capacidade de absorção de mão-de-obra formal e qualificada é limitada. Este padrão de crescimento, frequentemente designado como “modelo do funil”, concentra valor em segmentos restritos da economia, sem gerar efeitos de arrastamento significativos sobre o tecido produtivo nacional. O resultado é um crescimento concentrador, que aumenta o produto interno sem expandir de forma proporcional o emprego formal.

A elevada taxa de informalidade – 46,5% do emprego total – é a chave para compreender por que a relação clássica prevista pela Lei de Okun falha no caso cabo-verdiano. Grande parte do crescimento traduz-se em ocupações informais: trabalhadores por conta própria sem proteção social, vendedores eventuais, empregos sazonais ligados ao turismo. Estas formas de ocupação aumentam a população empregada sem, no entanto, constituírem emprego formal de qualidade, com direitos e progressão. A subutilização do trabalho, em torno de 23,9%, e o subemprego de 7,4% – com incidência superior entre mulheres e em meios rurais – reforçam que muitos trabalham menos do que gostariam e sem garantias, uma realidade que as estatísticas agregadas de emprego tendem a maquilhar.

A especialização em setores de baixo valor acrescentado e com fraca capacidade de absorção de mão de obra qualificada significa que o crescimento do produto pode resultar mais da intensificação do capital, do aumento de rendimentos turísticos e de ganhos de produtividade pontuais do que de verdadeira incorporação de emprego. 

Outro elemento crítico é a recente emigração de quadros e jovens qualificados. Este fenómeno, ao mesmo tempo que reduz a pressão sobre o mercado interno, priva o país de recursos humanos essenciais para a diversificação económica e para a inovação. A saída de mão-de-obra qualificada contribui para a manutenção de um mercado de trabalho segmentado, em que a oferta de emprego formal é insuficiente e a procura de oportunidades leva à perpetuação da informalidade. A emigração, neste sentido, funciona como um mecanismo de ajustamento externo que atenua tensões sociais imediatas, mas agrava a fragilidade estrutural do mercado laboral. 

Do ponto de vista institucional, as políticas públicas de emprego têm revelado limitações significativas. Programas de estágios que não resultam em integração efetiva e iniciativas de microcrédito com impacto reduzido são exemplos de medidas que, embora bem-intencionadas, não produzem efeitos estruturais. A predominância do Estado como empregador, aliada a práticas de clientelismo e compadrio, mina a credibilidade dos processos de recrutamento e limita a emergência de uma cultura de mérito que é vital para atrair e reter talento. E quando o mérito é desvalorizado, o talento emigra, deixando o país órfão de quadros e de esperança. O círculo vicioso repete-se: a falta de oportunidades alimenta a emigração, a emigração reduz a pressão interna por reformas, e a ausência de reformas perpetua a estagnação.

As desigualdades de género e territoriais constituem dimensões adicionais do problema. As mulheres enfrentam maiores taxas de subemprego e informalidade, em parte devido à sobrecarga de trabalho de cuidados não remunerado e à insuficiência de serviços de apoio que permitam a sua plena integração no mercado formal. As ilhas periféricas, por sua vez, enfrentam constrangimentos estruturais relacionados com a fraca diversificação económica, a escassez de infraestruturas e a distância dos principais centros de decisão. Estas disparidades reforçam a necessidade de políticas regionais diferenciadas e de investimentos direcionados para reduzir assimetrias e promover a coesão territorial.

A análise do mercado de trabalho cabo-verdiano demonstra, assim, que o crescimento económico, embora aparentemente robusto, não é condição suficiente para assegurar emprego de qualidade. A ausência de uma estratégia de diversificação produtiva, a elevada dependência de setores de baixo valor acrescentado e a fragilidade institucional limitam a capacidade do país de transformar crescimento em inclusão laboral. O desafio consiste em articular políticas macroeconómicas com políticas de emprego e proteção social, de modo a garantir que o desenvolvimento se traduza em oportunidades reais para a população.

Em conclusão, a situação atual evidencia a necessidade de uma revisão profunda do modelo de desenvolvimento. Cabo Verde dispõe de ativos estratégicos – estabilidade política, diáspora qualificada, atratividade turística e capital humano – que podem ser mobilizados para promover um crescimento mais inclusivo. Contudo, tal exige coragem política, visão técnica e capacidade de implementar políticas públicas coerentes e de longo prazo. Enquanto persistir a discrepância entre o discurso oficial e a realidade do mercado de trabalho, a narrativa de prosperidade continuará a ser desmentida pelos factos. Reconhecer esta realidade é condição necessária para redefinir prioridades e construir um pacto social assente em trabalho digno, formal e produtivo.

Praia, 15 de novembro de 2025

*Doutor em Economia

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