
Por: João Serra*
A célebre frase “É a economia, estúpido!”, cunhada em 1992 para a campanha presidencial de Bill Clinton, mantém plena atualidade quando observamos a erosão persistente do poder de compra em Cabo Verde. Entre a retórica oficial de estabilidade macroeconómica e a experiência concreta das famílias, instalou-se um desfasamento que não pode ser ignorado. Ao longo da última década, o custo de vida aumentou sem que os rendimentos acompanhassem esse movimento, expondo limitações profundas na capacidade do país para proteger os cidadãos dos choques externos e revelando insuficiências internas na formulação de políticas públicas.
Combinando os dados oficiais do INE (2016–2024) com a previsão do Banco de Cabo Verde para 2025, a inflação acumulada entre 2016 e 2025 rondará os 20%. Esses números, isoladamente, podem sugerir uma evolução moderada, dada a incidência de choques externos – a pandemia e a crise internacional dos preços dos alimentos e da energia.
No entanto, o Índice de Preços no Consumidor baseia-se num cabaz de 2015 que já não espelha os hábitos de consumo dos cabo-verdianos nem a variação efetiva do custo de aquisição desse cabaz representativo.
Em consequência, uma inflação acumulada de 20% não traduz com rigor o custo da vida quotidiana – como tenho escrito e demonstrado em diversos textos publicados. A subida dos preços dos bens essenciais foi muito superior à inflação oficial, e as famílias sentem-no diariamente.
Ao longo da década, os cabo-verdianos passaram a destinar uma fatia cada vez maior do rendimento familiar aos gastos essenciais, sobretudo à alimentação, cujo aumento de preços tem sido mais expressivo. A carestia afeta, em maior ou menor grau, toda a população. Porém, são as camadas com menores rendimentos – os pobres e os “remediados” (que considero constituírem a maioria da população em Cabo Verde) – que mais sofrem, porque destinam proporcionalmente uma parcela maior do rendimento ao consumo de bens e serviços básicos: alimentação, habitação, água, energia e transportes. Os gastos secundários só surgem depois de satisfeitas as necessidades mais prementes.
Nesse sentido, os aumentos dos preços dos bens e serviços essenciais são os que mais corroem o poder de compra sempre que os rendimentos não são atualizados para compensar essa perda.
Posso, desde já, afirmar que os aumentos salariais e das pensões verificados em Cabo Verde entre 2016 e 2025 não foram suficientes para neutralizar a inflação acumulada nesse período, sobretudo no que respeita aos bens e serviços básicos, por mais que a propaganda oficial insista em afirmar o contrário.
Relativamente aos servidores públicos e aos pensionistas, o Estado dispunha de margens fiscais para compensar a perda do poder de compra, mas não o fez: quanto mais elevada for a inflação – e perante efeitos de “inflação sobre inflação” – maior será a receita proveniente dos impostos indiretos, sobretudo do IVA, já que a taxa legal incide sobre preços mais altos.
Embora a reconstrução de uma série histórica detalhada dos preços por produto seja difícil de realizar, os dados do INE, complementados pelas estimativas efetuadas, permitem delinear com clareza a tendência dominante.
De forma sintética, entre 2016 e 2025 registaram-se aumentos significativos nos preços dos principais bens e serviços básicos em Cabo Verde: i) alimentos e bebidas não alcoólicas, 37,5%; ii) habitação e utilidades (água, eletricidade, gás e outros combustíveis), 32,5%; iii) transportes, 22,5%. Em suma, o custo médio destes agregados – que representam parcela substantiva do orçamento das famílias – cresceu 30,8% ao longo da década, refletindo tanto a inflação interna como a pressão de choques externos, incluindo a pandemia, a guerra na Ucrânia e a subida dos custos de importação.
Também não existem dados sistematizados sobre os aumentos salariais – no setor público e no setor privado – entre 2016 e 2025. Para aferir, de forma aproximada, a evolução salarial, recorremos aos números do INE, do INPS e do Governo relativos aos salários médios dos segurados, dos funcionários públicos e do setor informal e chegámos à seguinte estimativa: o salário médio nacional terá evoluído de 27.000–29.000 escudos mensais em 2016 para 32.000–36.000 escudos mensais em 2025. Em termos nominais, isso traduz um crescimento entre 18,5% e 24,1%.
Ora, se os bens e serviços essenciais subiram em média 30,8%, mesmo a faixa superior desse crescimento salarial não cobre o aumento do custo de vida.
A conclusão é dura e incontornável: entre 2016 e 2025 o trabalhador cabo-verdiano perdeu poder de compra, mesmo com salários nominalmente superiores.
Esta realidade ajuda a explicar fenómenos em expansão como, por exemplo, a precarização silenciosa da classe média urbana, o aumento do endividamento doméstico e a substituição de produtos essenciais por alternativas mais baratas.
Por outro lado, a incapacidade de garantir um rendimento compatível com o custo de vida empurra cada vez mais jovens para a emigração, drenando talento e comprometendo o futuro económico do país. A economia pode parecer “estável” nas apresentações governamentais, mas a estabilidade que não chega às famílias é, no máximo, uma ilusão estatística.
A vulnerabilidade externa – frequentemente invocada como explicação – é real, mas não pode servir como álibi permanente. Um país que importa cerca de 80% do que consome precisa, mais do que discursos, de reformas estruturais e visão estratégica. A paridade fixa com o euro ajuda a conter parte da inflação importada, mas não compensa a falta de políticas agrícolas consistentes, a dependência energética de combustíveis fósseis ou a lentidão na diversificação económica. A resposta governamental tem sido, demasiadas vezes, reativa e insuficiente perante fenómenos previsíveis num arquipélago altamente dependente do exterior.
Enfrentar a erosão do poder de compra exige uma estratégia multifacetada. No curto prazo, é imperativo reforçar os mecanismos de proteção social de forma eficaz, e não apenas simbólica, para mitigar o impacto da carestia sobre os mais vulneráveis. A médio e longo prazo, impõe-se apostar na diversificação económica e no reforço da produção nacional.
A transição energética para fontes renováveis não é apenas uma necessidade ambiental; é uma urgência económica para reduzir a dependência dos combustíveis fósseis e estabilizar os custos da eletricidade.
O fomento da agricultura e das pescas, visando maior segurança alimentar, é igualmente crucial para diminuir a exposição às flutuações internacionais dos preços dos alimentos.
Resumindo e concluindo: entre 2016 e 2025, os preços subiram muito mais do que os rendimentos. É esse o verdadeiro retrato do país. A economia não se mede apenas pela execução orçamental ou pela retórica oficial; mede-se à mesa das famílias, no supermercado, na fatura da eletricidade, na decisão angustiante de emigrar. Enquanto persistir o fosso entre a narrativa governamental e a realidade quotidiana dos cidadãos, continuará atual a máxima celebrizada por James Carville há três décadas: no final, “É a economia, estúpido”.
Praia, 13 de dezembro de 2025
*Doutorado em Economia



