Por: João Serra*
O Papa Francisco, líder máximo da Igreja Católica, morreu a 21 de abril de 2025. Era um homem de voz límpida cujos constantes apelos ao diálogo e à tolerância fizeram a diferença num período da história caraterizado pelo crescimento dos divisionismos e por algum retrocesso civilizacional nos valores da dignidade humana.
O seu pensamento abarcava temas tão diversos quanto a religião, a política e a economia. É precisamente sobre a visão económica de Francisco que gostaria de tecer algumas considerações em homenagem a este grande humanista.
Falando frequentemente das “periferias” – não só geográficas, mas também existenciais (os pobres, os migrantes, os idosos, os excluídos) – Francisco colocava os mais vulneráveis no centro das preocupações da Igreja. Essa proximidade não é mera questão de estilo, mas reflete uma opção teológica e pastoral fundamental: a Igreja deve ser um “hospital de campanha” que acolhe e cura feridas.
A ênfase na misericórdia, expressa no Jubileu Extraordinário da Misericórdia (2015–2016), reforça a ideia de que a Igreja deve sair ao encontro das pessoas em dificuldade, em vez de se fechar em abstrações doutrinárias.
É essa ligação às realidades humanas – sobretudo ao sofrimento provocado pela pobreza e pela exclusão – que alimenta a crítica vigorosa de Francisco ao sistema económico atual. Não foi o primeiro pontífice a tratar de questões sociais e económicas – a Doutrina Social da Igreja remonta à Rerum Novarum, de Leão XIII –, mas a sua análise é incisiva e ajustada aos desafios do século XXI. Identifica no “capitalismo selvagem” – sistema obsessivamente centrado no lucro, na especulação financeira e no consumo desenfreado – a origem de muitos dos males contemporâneos.
A expressão “capitalismo selvagem” tornouse emblemática do seu pontificado, sintetizando a condenação de um sistema que “idolatra o dinheiro” e gera exclusão. Na exortação apostólica Evangelii Gaudium (A Alegria do Evangelho, 2013), afirmou: “Esta economia mata” (§ 53), referindose à lógica de mercado que prioriza o lucro em detrimento da vida humana, agravando a pobreza, a degradação ambiental e as migrações forçadas. Criticou ainda a “cultura do descarte” que trata pessoas e recursos naturais como objetos descartáveis, evidenciando a incoerência entre crescimento económico e justiça social.
“A economia que mata, que exclui, que polui, que produz a guerra, não é economia: outros chamamna de economia, mas é apenas um vazio, uma ausência; é uma doença, uma perversão da própria economia e da sua vocação”, disse Francisco aos jovens no IV Encontro Anual da Economia de Francisco, em Assis, a 6 de outubro de 2023.
Para ele, a “idolatria do dinheiro” e a “ditadura de uma economia sem rosto e sem objetivo verdadeiramente humano” (§ 5556) subverteram a ordem de valores, colocando o lucro acima da dignidade humana e do bem comum. Rejeitou a teoria do “trickledown” (repercussão favorável), segundo a qual o crescimento económico beneficia naturalmente os mais pobres, considerandoa uma “opinião que nunca foi confirmada pelos factos” (§ 54). Defendeu que o neoliberalismo desregulado aprofunda divisões, criando uma minoria opulenta e uma maioria privada de direitos básicos. Francisco criticou ainda a “globalização da indiferença”, em que o sofrimento alheio, próximo ou distante, deixa de nos comover, e denunciou novamente a “cultura do descarte”, que trata seres humanos – nascituros, idosos, desempregados ou migrantes – como mercadoria.
Essa reflexão aprofundouse na encíclica Laudato Si’ (Louvado Sejas, 2015), dedicada ao cuidado da casa comum. Nela, Francisco associa, de modo inovador, a crise ecológica à injustiça social, argumentando que a exploração do planeta e a exploração dos pobres são “duas faces da mesma moeda”. Mostra como o paradigma tecnocrático e o modelo económico extrativista degradam o ambiente e agravam as desigualdades, afetando desproporcionalmente os mais pobres, que menos contribuíram para o problema, mas são os mais vulneráveis aos seus efeitos (alterações climáticas, poluição, perda de biodiversidade, escassez de água).
A Laudato Si’ propõe uma “ecologia integral” que reconhece a interligação de todas as criaturas e a necessidade de abordar as questões ambientais, económicas, sociais e culturais em conjunto. Critica a subordinação da política à tecnologia e às finanças e apela a mudanças radicais nos estilos de vida, nos modelos de produção e consumo e nas estruturas de poder globais. Destaca o “comportamento obsessivo pelo consumo” (§ 203) e a mercantilização de tudo o que existe.
A crítica de Francisco ao capitalismo selvagem não equivale a adesão a ideologias socialistas ou comunistas – etiquetas que rejeitou, afirmando que a doutrina social da Igreja deriva do Evangelho e da sua tradição. O que ele contesta é um sistema específico que absolutiza o mercado e o lucro, desumaniza as relações sociais, destrói o ambiente e gera exclusão. Do mesmo modo, a sua proposta não é a abolição do mercado ou da iniciativa privada, mas a sua subordinação a princípios éticos e ao bem comum. Ele defende uma economia “a serviço da pessoa humana”, que promova o trabalho digno, a justiça social e a sustentabilidade ambiental. Apela a uma “conversão ecológica e social”, que implica mudanças estruturais, mas também transformações pessoais e comunitárias.
No livro “El Pastor: Desafios, razões e reflexões de Francisco sobre seu pontificado”, editado há dois anos, Francisco afirmou que “é a favor do que João Paulo II definiu como uma economia social de mercado”, sublinhando que “isso implica a presença de uma autoridade reguladora que é o Estado, que deve mediar as partes”. E destacou tratar-se de “uma mesa com três pernas: o Estado, o capital e o trabalho”.
Nesse mesmo livro, o Papa Francisco identificou a especulação no mundo financeiro como o maior problema da economia de hoje. “Enquanto o rendimento de uma minoria aumenta exponencialmente, o da maioria está a desmoronar”. Para ele, “este desequilíbrio resulta de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira, negando assim o direito de controlo aos Estados, que têm a responsabilidade de garantir o bem comum”.
O Papa Francisco deixou, assim, bem claro que não condenava o capitalismo. No entanto, ressalvou que a “riqueza produzida tem de ser distribuída por todos” para que seja “justo”.
Em suma, a crítica do Papa ao “capitalismo selvagem” não é um apêndice, mas uma consequência lógica da sua visão de uma Igreja samaritana e da sua fidelidade ao Evangelho. Ao colocar a dignidade humana e o cuidado da criação no centro da sua mensagem, Francisco desafia não apenas os católicos, mas toda a humanidade a repensar os fundamentos éticos da nossa convivência social e económica, e a construir um futuro mais justo, fraterno e sustentável para todos. O “Papa do povo” é, assim, também o Papa que ousa questionar um sistema que, aos seus olhos, coloca o dinheiro acima das pessoas e ameaça a nossa casa comum.
“Requiescat in pace” (Repouse em paz)!
Praia, 26 de abril de 2025
*Doutorado em Economia
