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Sociedade

Honório Pereira Barreto: O filho de cabo-verdiano que ‘salvou’ a Guiné Portuguesa

Condecorado, muito apreciado pela administração colonial portuguesa e considerado como ‘um homem de valor’ por Amílcar Cabral, a memória de Honório Pereira Barreto não escapa hoje a alguma controvérsia. Este filho de pai cabo-verdiano e mãe guineense passa à história como governador enérgico e negociante sagaz, ao serviço da coroa portuguesa, mas também como esclavagista, o negócio mais lucrativo do seu tempo, na região da Guiné.

É curioso como a região da antiga Guiné Portuguesa tenha produzido duas das maiores figuras de destaque da administração colonial portuguesa em África: Marcelino da Mata, considerado o mais condecorado soldado do exército português de sempre, nascido em Bula, na Guiné Portuguesa, com 11 anos de dedicação à causa colonial lusa, e Honório Pereira Barreto, nascido em 1813, na fortaleza de Cacheu. Este o único africano, até aos dias de hoje, a ter a sua efígie numa nota do Banco Nacional Ultramarino. As escavações que decorrem no pátio da casa que pertenceu ao militar, comerciante e aventureiro, trouxeram o nome de Pereira Barreto de novo para a actualidade. 

Na primeira metade do século XIX, Honório Pereira Barreto ocupou vários cargos na administração colonial na chamada Guiné Portuguesa, ao mesmo tempo que desenvolvia o comércio de escravos. Era filho de um sargento-mor cabo-verdiano chamado João Pereira Barreto Jr e de Rosa de Carvalho Alvarenga, mais conhecida localmente por Dona Rosa de Cacheu ou simplesmente Nha Rosa, uma guineense oriunda de uma família de comerciantes de Ziguinchor. O jovem Honório seria enviado ainda muito cedo para Portugal, Lisboa, para estudar e preparar-se para seguir uma carreira militar. O tempo que passou na capital da então metrópole teve grande impacto nele. 

Honório conheceu pessoas importantes e admirou os monumentos e as instituições portuguesas, passando a ter grande veneração patriótica, já que se considerava um português como qualquer outro, apesar da cor da sua pele. Aos 16 anos dá-se a morte do pai e ele é obrigado a regressar à Guiné, para assumir a gerência da casa comercial, no Cacheu. A inteligência, o desassombro e argúcia para os negócios cedo fazem de Honório uma figura à parte. Ao mesmo tempo, inicia uma carreira como provedor do concelho e chegará a ser nomeado por Pereira Marinho, governador-geral de Cabo Verde (que à época administrava a Guiné) governador interino da Guiné, entre 1837 e 1839, coincidindo este período com as incursões dos franceses na região da Casamansa, numa tentativa destes de se assenhorarem de regiões tidas pelos portugueses como suas. 

Exemplo de um Portugal ‘multiracial’

Na segunda metade do século XX, Portugal veria vantagens em recuperar – e mesmo romantizar -a vida de Honório Pereira Barreto, uma figura que lhe podia servir quando procurava passar, internacionalmente, a imagem de um multiculturalismo luso exemplar, e que seria a imagem de um país “do Minho a Timor”, onde um negro poderia ocupar o cargo de governador de um seu território africano. Era como uma espécie de “prova” de como a presença portuguesa nas ex-colónias era bem vista por gente que localmente defendia a presença de Portugal na região. 

A imagem de Honório Pereira Barreto juntou-se à de outras figuras que marcavam a presença de Portugal, como exploradores e militares que participaram nas ‘campanhas de pacificação’, para além de navegadores, políticos e juristas coloniais. Tudo para a glorificação dos feitos históricos de conquista e exploração dos portugueses no mundo. No entanto, parece que o empenho de Honório Pereira Barreto em contrariar os avanços dos franceses na Guiné Portuguesa, na primeira metade de Oitocentos, segundo alguns historiadores, se devia mais a salvaguardar e a garantir o seu comércio e sua influência na região. 

Por outro lado, haveria que procurar soluções para esse efeito, já que o verdadeiro interesse dos deputados às Cortes, pela Guiné, era quase nulo. Eram, na sua maior parte, os comerciantes cabo-verdianos – entre eles Caetano José Nasolini, natural do Fogo e casado com dona Aurélia, de uma família nobre bijagó, igualmente comerciante, governador e traficante de escravos, em Bolama – que iam mantendo o pavilhão português no alto dos postes, suportando humilhações franceses e inglesas, pelos rios da Guiné acima. Para além dos tratados negociados entre Pereira Barreto e os régulos locais. 

Crítica ao abandono por Portugal

A sua crítica à apatia dos políticos de Lisboa não se fez esperar: “Desde o dia em que li o discurso de um senhor deputado, cujo nome me não lembra (porque não merece ser lembrado pelos habitantes destas Possessões), em que dizia que as Câmaras não se deviam ocupar do negócio de Casamansa, por ser um nome bárbaro, e que não vi os ministros levantarem-se como uma só pessoa para combater tais expressões, desde esse dia fiquei persuadido que os estrangeiros podiam, quando quisessem, roubar as nossas possessões; e que os habitantes de Ziguinchor, sendo-lhes impossível sustentar a concorrência nos mercados gentios, ver-se-iam obrigados a abandonar o presídio, que têm defendido com o seu sangue e dinheiro.” 

Aos 33 anos, Honório Barreto publicaria um opúsculo, Memória sobre o estadual actual da Senegâmbia Portuguesa, expondo a ‘decadência’ na região: “Há governantes, mas não há governo, os funcionários só tratam dos seus negócios, ignorando completamente as suas atribuições, os padres pouco ligam para a moral, vivendo amasiados com suas barregãs sem qualquer pejo, sendo os mais libertinos e desmoralizados; a tropa é indisciplinada, esfarrapada e turbulenta, os estrangeiros tratam as autoridades com desdém e insultam a bandeira portuguesa.” 

Quanto ao tipo de pessoas que vinham da Europa, Honório Pereira Barreto fala de “gente de má qualidade, composta por criminosos e homens da mais baixa classe do povo que apenas aqui chegados passam a ser Notáveis”. Deste mesmo período é o estudo do tenente polaco do Corpo de Engenheiros José Conrado Carlos de Chelmicki, a Corografia Cabo-Verdiana, uma prova provada do estado de abandono de Cabo Verde e da Guiné. Sobre esta última, relatava em 1841 que os Papéis da ilha de Bissau entravam impunemente na casa do governador, que também era comerciante, tiravam-lhe o chapéu da cabeça e tomavam qualquer coisa que lhes aprouvessem. 

Ruínas da casa de Honório Pereira Barreto, Cacheu, foto Público

O ‘troco’ para inglês ver

Sobre as humilhações sofridas dos europeus, ficou para a história um episódio revelador da ‘manha’ e perspicácia de Honório Pereira Barreto. Um comandante da marinha de guerra inglesa pediu uma audiência ao governador Pereira Barreto, no que foi prontamente atendido. Quando aguardava a chegada do oficial, vestido com o seu melhor traje de gala, Barreto percebeu graças a seus binóculos que o inglês vinha vestido de chambre (robe), chapéu de palha e de chinelas. Adivinhando a ofensa pretendida com o uso daqueles trajes, Honório rapidamente se despiu de seu garboso uniforme, arregaçou as calças, pôs-se em mangas de camisa e calçou também umas chinelas. 

O comandante britânico veio a encontrá-lo assim, no patamar de uma escada. E sem saber com quem falava, perguntou pelo governador. Quando descobriu que estava em sua presença e que a intenção de o insultar, desrespeitando as regras básicas da etiqueta entre oficiais graduados, não surtira efeito, retornou ao barco e voltou apropriadamente trajado, sendo então recebido com as devidas honras pelo governador guineense.

As escavações na antiga casa de Honório Pereira Barreto, cujos trabalhos começaram desde o dia 2 de Abril, são chefiadas pelo arqueólogo português Rui Gomes Coelho e fazem parte de um projecto maior, designado por “Ecologias da Liberdade, materialidades da escravidão e pós-emancipação no mundo atlântico”. Nas ruínas da casa senhorial conseguem-se identificar quatro épocas sobrepostas: a peças de cerâmica encontradas e os muros de adobe são do século XVI, a época mais antiga (altura em que desta praça de Cacheu saíam homens e mulheres rumo à Cidade Velha, em Santiago). 

Segue-se a primeira casa de pedra, do século XVII, com estes materiais vindos de Portugal, E, finalmente, as ruínas que restam da casa, do século XIX e com melhoramentos já do século XX. De acordo com os achados arqueológicos, a casa terá albergado armazéns, lojas, telheiros, prisões ou cozinhas, estruturas típicas de um complexo esclavagista da primeira metade do século XIX. Honório Pereira Barreto era neto de um padre natural de Santiago e terá herdado o talento da mãe para os negócios. Depois de enviuvar, e ainda com filhos pequenos, Nha Rosa do Cacheu, aumentou a sua influência na região bem como o seu património. À sua morte, deixou propriedades na Guiné, em Cabo Verde e em Lisboa. 

Homem controverso

A ideia de um colonialismo não-racista, tomando como exemplo Honório Pereira Barreto, surge com mais força depois biografia que Jaime Walter (1947) escreve sobre ele. Schacht Pereira, investigador das subjectividades negras na literatura portuguesa e professor do departamento de Espanhol e Português da Universidade de Ohio (descendente de Honório Pereira Barreto), lembra como este filho de cabo-verdiano e guineense, que atingiu grande destaque na Guiné, era tanto apreciado pela administração colonial, como pelo próprio Amílcar Cabral. 

O fundador do PAIGC referia-se a Honório Pereira Barreto como “um homem de valor”, sem contudo deixar de lhe imputar a responsabilidade na forma como ajudou Portugal a enganar e dominar os povos da Guiné, ainda assim, deve ser visto como fruto do seu tempo.  

“Mas devemos sentir respeito por Honório Barreto. Podemos criticá-lo pela sua atitude, mas foi um homem de valor. Nessa época, com a mentalidade dominante, um indivíduo saído do povo, educado por portugueses, vivendo entre eles, tocando guitarra e cantando fados, não teria outro caminho senão esse. Foi essa a sua incumbência e desempenhou-a bem. Assim como Honório Barreto serviu os portugueses, talvez qualquer um de nós fizesse o mesmo, se tivéssemos tido a sua educação e vivido no momento da História em que ele viveu”, disse Amílcar Cabral. 

Honório Barreto fica, assim, para a história como um homem ‘controverso’, recolhendo admiração pelo seu trabalho na resistência à cobiça de ingleses e franceses, sobre os territórios ‘portugueses’, e como um infame comerciante que traficou seres humanos. Morreu em 1859, aos 46 anos, na Fortaleza de S. José de Amura, em Bissau, como tenente-coronel de artilharia. 

Foi condecorado com o grau de Comendador da Ordem Militar de Cristo e com o grau de Cavaleiro da ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, lealdade e Mérito. Nos anos de 1950 foi impressa uma série de notas de 500$00 e 1000$00 da Guiné, assim como selos, com a sua imagem. Existe ainda uma corveta da marinha portuguesa baptizada com o seu nome, assim como um largo na freguesia do Beato, em Lisboa. 

A sua estátua, erguida numa praça de Bissau, com o mesmo nome (hoje Praça Che Guevara), depois da independência foi deposta e jazz hoje num canto da Fortaleza de Cacheu, no mesmo local onde Honório Pereira Barreto nasceu, há 212 anos. Também o único liceu da Guiné, em Bissau, perdeu o seu nome inicial e passou a chamar-se Liceu Nacional Kwame N’Krumah. Ou seja, de nada valeu Amílcar Cabral ter ensinado aos seus “continuadores” para a importância histórica de Honório Pereira Barreto. 

As escavações na antiga casa de Honório Pereira Barreto, cujos trabalhos começaram desde o dia 2 de Abril, são chefiadas pelo arqueólogo português Rui Gomes Coelho e fazem parte de um projecto maior, designado por “Ecologias da Liberdade, materialidades da escravidão e pós-emancipação no mundo atlântico”. Nas ruínas da casa senhorial conseguem-se identificar quatro épocas sobrepostas: a peças de cerâmica encontradas e os muros de adobe são do século XVI, a época mais antiga (altura em que desta praça de Cacheu saíam homens e mulheres rumo à Cidade Velha, em Santiago). 

Segue-se a primeira casa de pedra, do século XVII, com estes materiais vindos de Portugal, E, finalmente, as ruínas que restam da casa, do século XIX e com melhoramentos já do século XX. De acordo com os achados arqueológicos, a casa terá albergado armazéns, lojas, telheiros, prisões ou cozinhas, estruturas típicas de um complexo esclavagista da primeira metade do século XIX. Honório Pereira Barreto era neto de um padre natural de Santiago e terá herdado o talento da mãe para os negócios. Depois de enviuvar, e ainda com filhos pequenos, Nha Rosa do Cacheu, aumentou a sua influência na região bem como o seu património. À sua morte, deixou propriedades na Guiné, em Cabo Verde e em Lisboa. 

Herói, ‘homem de valor’ e esclavagista

A ideia de um colonialismo não-racista, tomando como exemplo Honório Pereira Barreto, surge com mais força depois biografia que Jaime Walter (1947) escreve sobre ele. Schacht Pereira, investigador das subjectividades negras na literatura portuguesa e professor do departamento de Espanhol e Português da Universidade de Ohio (descendente de Honório Pereira Barreto), lembra como este filho de cabo-verdiano e guineense, que atingiu grande destaque na Guiné, era tanto apreciado pela administração colonial, como pelo próprio Amílcar Cabral. 

O fundador do PAIGC referia-se a Honório Pereira Barreto como “um homem de valor”, sem contudo deixar de lhe imputar a responsabilidade na forma como ajudou Portugal a enganar e dominar os povos da Guiné, ainda assim, deve ser visto como fruto do seu tempo.  

“Mas devemos sentir respeito por Honório Barreto. Podemos criticá-lo pela sua atitude, mas foi um homem de valor. Nessa época, com a mentalidade dominante, um indivíduo saído do povo, educado por portugueses, vivendo entre eles, tocando guitarra e cantando fados, não teria outro caminho senão esse. Foi essa a sua incumbência e desempenhou-a bem. Assim como Honório Barreto serviu os portugueses, talvez qualquer um de nós fizesse o mesmo, se tivéssemos tido a sua educação e vivido no momento da História em que ele viveu”, disse Amílcar Cabral. 

Honório Barreto fica, assim, para a história como um homem ‘controverso’, recolhendo admiração pelo seu trabalho na resistência à cobiça de ingleses e franceses, sobre os territórios ‘portugueses’, e como um infame comerciante que traficou seres humanos. Morreu em 1859, aos 46 anos, na Fortaleza de S. José de Amura, em Bissau, como tenente-coronel de artilharia. 

Foi condecorado com o grau de Comendador da Ordem Militar de Cristo e com o grau de Cavaleiro da ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, lealdade e Mérito. Nos anos de 1950 foi impressa uma série de notas de 500$00 e 1000$00 da Guiné, assim como selos, com a sua imagem. Existe ainda uma corveta da marinha portuguesa baptizada com o seu nome, assim como um largo na freguesia do Beato, em Lisboa. 

A sua estátua, erguida numa praça de Bissau, com o mesmo nome (hoje Praça Che Guevara), depois da independência foi deposta e jazz hoje num canto da Fortaleza de Cacheu, no mesmo local onde Honório Pereira Barreto nasceu, há 212 anos. Também o único liceu da Guiné, em Bissau, perdeu o seu nome inicial e passou a chamar-se Liceu Nacional Kwame N’Krumah. Ou seja, de nada valeu Amílcar Cabral ter ensinado aos seus “continuadores” para a importância histórica de Honório Pereira Barreto. 

Joaquim Arena

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