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Saúde

Saúde Mental nas ruas: entre a saúde e a segurança

O aumento de pessoas com transtornos mentais nas ruas em Cabo Verde, sobretudo nos centros urbanos, é cada vez mais visível e inquietante. Além do desconforto social, suscita preocupações com a saúde pública, a dignidade humana e a segurança. A perceção generalizada associa o fenómeno ao aumento do consumo de droga, mas, para os especialistas, reconhecer a sua complexidade e adotar medidas integradas e sustentáveis são o primeiro passo para melhorar o panorama. 

Desemprego, pobreza e crises familiares estão entre os factores que podem levar uma pessoa a estar nas ruas, onde a vulnerabilidade se acentua se padecer de um transtorno mental. Temidas ou ignoradas, vivem muitas vezes entre a impotência familiar, o aparente abandono institucional e o estigma social. Em Cabo Verde, não há dados estatísticos sobre o perfil clínico dessas pessoas, mas a perceção do aumento é unânime, com relatos de episódios de descompensação e distúrbios. 

Lúcia Cardoso, residente na cidade da Praia, sofreu uma tentativa de agressão de uma mulher com aparente transtorno mental no Platô, que “atirou pedras, agrediu outras pessoas e causou uma grande confusão”. A polícia foi chamada e foi apresentada uma queixa, mas a mulher foi rapidamente liberada e regressou ao mesmo local. Lúcia defende medidas urgentes e contínuas, devido ao impacto dessas situações “a nível da família, da comunidade e da segurança”. 

Há quem testemunhe pessoas com transtornos mentais a serem maltratadas. “Fico com pena, porque acho que precisam é de ajuda”, lamenta Valentina Lopes, vendedora no Palmarejo. Entretanto, o funcionário de uma pastelaria refere que “muitas vezes é obrigado a retirá-las do local, quando perturbam os clientes”. 

Segundo o Comandante Regional de Santiago Sul e Maio, Orlando Évora, de Janeiro a Março deste ano, a Polícia Nacional na Praia registou 100 ocorrências envolvendo pessoas com transtornos comportamentais, sobretudo no Palmarejo, Platô, Terra Branca, Achadinha e São Filipe. “Muitas vezes, os próprios familiares pedem apoio para levar as pessoas ao hospital”, explica. 

Évora esclarece que a maior parte das ocorrências não são de agressão, mas sim de actos de vandalismo ou distúrbios públicos. “Nesses casos, são encaminhados ao hospital para receberem tratamento”, informa. 

Conhecer para intervir: o desafio da reabilitação 

Para o psiquiatra do Hospital Baptista de Sousa (HBS) em São Vicente, Aristides Luz, a situação actual é agravada pelo uso de substâncias psicoativas, que pode levar a transtorno mental ou alterações de comportamento. “Muitos dos que estão nas ruas não têm doença psiquiátrica, mas sofrem de dependência química, o que requer outro tipo de intervenção”, alerta. 

De qualquer forma, defende que associar as pessoas com doença mental à violência ou considerá-las uma ameaça pode aumentar o estigma e dificultar o acesso aos cuidados. Para Luz, o sistema de saúde deve ir ao encontro dessas pessoas, como faz uma equipa do HBS, que as acompanha nas ruas, pois “têm o direito de estar na rua, desde que com dignidade e apoio”. 

Questiona a ideia de que “temos de colocar os doentes no hospital”, pois “não é a única e a melhor solução”, até porque contribui para a estigmatização. Defende o internamento apenas em casos de descompensação, porque “um indivíduo integrado na sociedade precisa de menos medicamentos, com um custo muito menor para o Estado”. 

Família e comunidade: entre o cuidado e a exaustão

A família é fundamental, mas enfrenta dificuldades. “Há doentes que circulam durante o dia, mas voltam para casa à noite, fazem o tratamento e mantêm-se estáveis”, observa o psiquiatra Aristides Luz. É o caso de Carlos (nome fictício), visto frequentemente nas ruas do Mindelo. Um familiar garante que é acompanhado por uma estrutura de saúde, mas gosta de passear. 

As alterações de comportamento causadas pelo uso de droga são mais complexas. Morena (nome fictício), mãe de um jovem toxicodependente, confessa sentir-se esgotada e ilustra os limites do suporte familiar. “Já tentámos de tudo. Ele abandona os tratamentos, volta para as ruas, pede dinheiro e vende objetos de casa para comprar droga. Tem ficado violenta e temos medo que cometa um crime”, descreve. 

Estes relatos evidenciam a urgência de um sistema em rede, defendida por Luz, que integre saúde, apoio social, reintegração familiar, laboral e social.

Direitos em risco, respostas limitadas

A Organização Mundial da Saúde tem alertado para violações dos direitos humanos de pessoas com transtornos mentais, devido ao estigma e discriminação. Em Cabo Verde, a Lei nº 37 /VII/2013 estabelece o direito dessas pessoas a “receber tratamento e proteção”, mas as respostas parecem insuficientes. 

Para a Presidente da Comissão Nacional para os Direitos Humanos e a Cidadania (CNDHC), Eurídice Mascarenhas, a sua presença nas ruas envolve a violação de múltiplos direitos fundamentais e da própria dignidade humana e exige uma intervenção personalizada. “Direito à saúde, habitação, alimentação, segurança e dignidade. Tudo isso está em causa. Não se trata apenas de saúde, mas de justiça social e de políticas públicas inclusivas”, afirma. 

Contactado pelo jornal A NAÇÃO, o Ministério da Saúde informou que o Programa de Saúde Mental está em reformulação, mas pouco se sabe sobre prazos ou ações concretas. Em Janeiro, uma reunião de emergência discutiu episódios de violência envolvendo pessoas nas ruas, com promessas de medidas urgentes.

Entretanto, na cidade da Praia, a vereadora da Saúde e Acção Social da Câmara Municipal, Suely Carvalho, reconhece que a maioria das pessoas nas ruas são doentes mentais e dependentes de substâncias psicoativas. Iniciativas como o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), o programa Anjos da Noite e a Casa Abrigo Municipal têm prestado apoio, mas enfrentam limitações de recursos humanos e financeiros. 

Em São Vicente, o vereador para a área social, Rodrigo Martins, não tem dados, mas admite a gravidade da situação, especialmente entre jovens com histórico de uso de droga. Cita o Centro de Acolhimento de Doentes Mentais, que oferece cuidados médicos, sociais e atividades de reintegração, mas reforça a necessidade de ações conjuntas para respostas mais eficazes. 

Do diagnóstico à solução: uma responsabilidade partilhada

Para o Bastonário da Ordem dos Psicólogos, Daniel Lopes, a ausência de dados sobre o número e tipo de transtornos das pessoas em situação de rua dificulta o planeamento de intervenções. “Os transtornos psicóticos, embora menos frequentes, são mais visíveis e envolvem risco à integridade própria ou alheia, o que já constitui um risco para a segurança pública”, defende. 

O psiquiatra Aristides Luz reforça que a resposta deve ser diferenciada: para os doentes mentais, “reabilitação e integração social”, através de Centros de Atenção Psicossocial e políticas direcionadas; para os toxicodependentes, reforço do combate ao tráfico e melhoria dos serviços de tratamento. 

Apesar da falta de dados, há consenso quanto à urgência de uma intervenção articulada entre família, comunidade e instituições, que garanta o acesso à saúde e a segurança pública. Só assim essas pessoas deixarão de ser vistas como presenças incómodas nas ruas, para serem reconhecidas como cidadãos com direitos, histórias e dignidade. 

 

Ilda Fortes

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