Por: Américo Medina*
O Decreto-Lei n.º 16/2025 cria em Cabo Verde a Autoridade Aeronáutica Militar (AAM), uma entidade pública incumbida de regular, fiscalizar e supervisionar as atividades aeronáuticas de carácter militar no arquipélago. À primeira vista, parece uma medida alinhada com as exigências de segurança operacional, conformidade com padrões internacionais e articulação com entidades civis, como a Agência de Aviação Civil (AAC).
O contexto cabo-verdiano
Cabo Verde, todavia, enfrenta no setor aeronáutico civil desafios significativos em matéria de supervisão técnica, capacidade regulatória e cumprimento das normas da ICAO e da EASA. Neste cenário, criar uma Autoridade Aeronáutica Militar sem consolidar antes a regulação civil pode acarretar riscos concretos:
– Duplicação de Estruturas: Cria-se nova burocracia e despesa administrativa num país sem margem orçamental para suportar tais encargos;
– Fragmentação da Supervisão: Divide-se a supervisão entre civil e militar, gerando zonas cinzentas de jurisdição e potenciais conflitos em várias situações;
– Dependência Externa: Cabo Verde não dispõe de know-how interno para formar inspetores, auditores ou reguladores militares, o que implicará recorrer a consultores internacionais;
– Desvio de Recursos: Recursos que poderiam fortalecer a AAC acabam deslocados para a nova entidade, deixando a aviação civil ainda mais carente.
Além disso, é impossível ignorar as recentes ocorrências que têm ensombrado as Forças Armadas de Cabo Verde, levantando dúvidas sérias sobre a sua capacidade de cumprir cabalmente as suas missões republicanas. A sucessão de tragédias, abusos e incidentes graves – mortes de recrutas durante a formação, acidentes rodoviários fatais em missões mal planificadas, casos de abusos sexuais abafados por um silêncio cúmplice, envolvimento em operações sensíveis de emergência médica sem observar as normativas e práticas recomendadas -, sem qualquer responsabilização política, administrativa ou judicial, demonstra uma preocupante cultura de impunidade e opacidade institucional.
Estes episódios não são rumores: ocorreram de facto! São vidas humanas perdidas, direitos violados e falhas operacionais graves que desonram a instituição e minam a confiança da Nação na sua estrutura de defesa. Antes de atribuir responsabilidades regulatórias às Forças Armadas no domínio da aeronáutica, é imperioso questionar se estas estão preparadas, ética e operacionalmente, para as exercer com o rigor e a responsabilidade que o interesse nacional exige.
O exemplo português
Portugal, com experiência em conflitos no “Ultramar”, caças, helicópteros, radares e uma estrutura consolidada de defesa aérea, só criou a sua Autoridade Aeronáutica Nacional em 2013 (Decreto-Lei n.º 28/2013). Fê-lo após décadas de responsabilidades partilhadas entre civis e militares, consolidando antes quadros técnicos, orçamento e maturidade regulatória.
Em Cabo Verde, onde a aviação militar é inexistente – não há aeroportos militares, não há aeronaves, caças, helicópteros nem mesmo drones recreativos da DJI nos quartéis – é legítimo questionar se faz sentido criar, de raiz, uma estrutura militar reguladora para uma realidade que simplesmente não existe.
Custos e sustentabilidade
A criação da AAM exigirá investimentos substanciais: instalações, sistemas de TI, segurança de dados, recrutamento e formação de pessoal especializado, consultoria internacional e auditorias externas, entre outros. Em países pequenos e sem escala crítica, esses custos tornam-se rapidamente insustentáveis, agravando a dependência externa e alimentando estruturas que dificilmente cumprirão eficazmente o seu mandato.
O risco da deriva estratégica
Há o perigo de a AAM se tornar uma fantasia estratégica que desvia recursos da regulação civil, essencial para a segurança de passageiros e operadores. Antes de criar uma entidade militar, não seria mais sensato:
1. Reforçar a AAC, ampliando o número de técnicos e o orçamento num sistema único e “híbrido”?
2. Definir protocolos de coordenação civil-militar, evitando fragmentações regulatórias?
3. Avaliar com rigor os custos e as reais necessidades do país?
O Decreto-Lei n.º 16/2025 corre o risco de criar uma realidade virtual, descolada das necessidades do país, sem base histórica ou técnica sólida. Cabo Verde precisa de consolidar a regulação civil e investir em áreas críticas para o desenvolvimento económico antes de avançar com novas estruturas que podem agravar a dependência externa.
Uma Exigência Externa?
Não será esta iniciativa legislativa menos uma necessidade interna e mais uma exigência (direta ou indireta) de parceiros estratégicos? Pergunta-se, Senhores Deputados e Senhor Presidente da República, Comandante em Chefe das FACV:
– Estamos a responder a uma necessidade real ou a alinhar-nos com interesses externos?
– Temos riscos ou ameaças militares reais que justifiquem a criação de uma autoridade própria?
– Ou estamos a preencher requisitos impostos por parceiros como NATO, UE ou EUA, na base de uma agenda oculta?
Dependência e geopolítica
Sem massa crítica, a AAM dependerá de assistência técnica estrangeira por décadas. Estaremos a servir mais aos interesses dos parceiros do que às necessidades nacionais? Não será essa dependência um sinal de alinhamento estratégico em detrimento da busca de uma soberania mais plena?
Cabo Verde ocupa uma posição geográfica estratégica no Atlântico. A criação da AAM poderá ser interpretada como credencial para que potências estrangeiras consolidem presença na região. Antes de criar uma autoridade militar, não seria mais prudente consolidar a regulação civil, reforçar a segurança operacional e investir em infraestruturas e recursos humanos?
Essas questões sugerem que a AAM pode vir a ser uma peça no tabuleiro geopolítico de parceiros que querem ver Cabo Verde integrado em redes de defesa regionais. Em vez de priorizar as necessidades reais — regulação civil, segurança operacional e fortalecimento institucional —, podemos estar a investir recursos escassos numa estrutura que responde mais a pressões externas do que ao interesse nacional.
Concluindo, Cabo Verde não deve confundir ambição institucional com prioridades estratégicas. É hora de pensar com responsabilidade, evitar a fragmentação e priorizar o essencial: um sistema aeronáutico unificado, seguro, eficiente e sustentável, antes de dar mais um passo na entropia institucional que tanto nos aflige.
Vale a pena sublinharmos, a criação da Autoridade Aeronáutica Militar em Cabo Verde, tal como delineada, não deve ser vista apenas como uma aspiração institucional, mas sim como uma decisão que exige prudência, responsabilidade e alinhamento com as reais necessidades do país.
Só assim será possível edificar um setor aeronáutico robusto, seguro e sustentável, capaz de servir de forma genuína e eficaz os legítimos interesses de Cabo Verde, evitando o risco de isso tudo degenerar em mais um episódio de dependência externa e dispersão de recursos — ou mesmo em instrumento de manobra de terceiros num tabuleiro de forças que, por vezes, nos transcende e compromete o nosso futuro coletivo.
*Consultor em Aerospace
