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Descalabro da confiança e da transparência na gestão da “res publica” em Cabo Verde

Por: João Serra*

A edificação de uma economia próspera e de uma democracia vibrante assenta em alicerces que, embora invisíveis, são absolutamente essenciais: a confiança dos cidadãos nas suas instituições e a transparência na gestão da coisa pública. Sem estes pilares, as instituições públicas perdem legitimidade, os mercados tornam-se voláteis e a democracia enfraquece, impactando negativamente o processo de desenvolvimento.

Historicamente, Cabo Verde tem sido apontado como um exemplo de estabilidade democrática e de boa governação em África. No entanto, o cenário atual revela um quadro muito mais complexo e, por vezes, perturbador, onde a confiança dos cidadãos nas instituições e a transparência na gestão dos recursos públicos têm vindo a declinar de forma acentuada.

Com efeito, segundo o inquérito realizado pela Afrosondagem entre 27 de agosto e 10 de setembro de 2024, a confiança dos cabo-verdianos em diversas instituições da República tem registado quedas alarmantes nos últimos anos. Esta diminuição abrupta não pode ser encarada como mero capricho momentâneo de opinião: trata-se de um sintoma claro de um desencanto generalizado que demonstra a desconexão entre as promessas políticas e os resultados efetivamente visíveis na vida quotidiana dos cabo-verdianos.

Os dados do Afrobarómetro (AB) evidenciam sinais claros de descontentamento e desconfiança crescentes. Em 2024, 63% dos cabo-verdianos inquiridos achavam que o país seguia na direção errada (um aumento de 7 pontos percentuais em relação a 2019) e 75% temiam retaliações caso denunciassem atos de corrupção. No plano económico, a avaliação é ainda mais severa: 91% consideravam que o Governo falhou no combate à inflação, e 66% achavam que o Governo gere mal a economia em geral.

Por outro lado, os dados do AB indicam que uma percentagem significativa da população (51%) considera que a corrupção aumentou no último ano e que muitos funcionários públicos e políticos estão envolvidos em corrupção. E 68% dos inquiridos atribuem uma nota negativa ao combate à corrupção no Governo. Tal perceção, mesmo que nem sempre corresponda à magnitude real do problema, é corrosiva para a confiança. Se os cidadãos acreditam que o sistema é viciado e que os que detêm o poder enriquecem ilicitamente, a sua ligação emocional e moral ao Estado enfraquece dramaticamente.

Estes indicadores do AB não são apenas estatísticas frias; são o retrato de uma sociedade onde a fé na capacidade das instituições para servir o interesse público e operar de forma justa está a ser posta à prova. Quando a confiança se desvanece, a probabilidade de os cidadãos denunciarem ilícitos diminui, a disposição para participar ativamente na vida democrática arrefece e a legitimidade do poder político para implementar reformas necessárias é questionada.

A erosão da confiança espelhada nos dados do AB não surge do nada; é frequentemente alimentada pela falta de transparência na gestão da coisa pública.

Ora, nos últimos anos, têm sido noticiados, nos órgãos de comunicação social, vários casos com fortes indícios de falta de transparência, de ilegalidades e de atos corruptos, sendo o caso mais grave e preocupante, até hoje conhecido, o relacionado com os relatórios de inspeção realizados aos fundos do turismo e do ambiente pela Inspeção Geral de Finanças (IGF), abrangendo os anos de 2018 e 2019. Apenas no concernente ao Fundo do Turismo, a IGF constatou várias inconformidades, nomeadamente: (i) financiamentos ilegais, através de contratos celebrados com os municípios, num total que ascende a quase 3,2 milhões de contos; (ii) casos de ajuste direto em serviços de consultoria e sem fundamentação; (iii) desvio de fins; (iv) duplo financiamento; (v) derrapagem financeira superior a 100%; e (vi) trabalhos a mais acima do limite legal e sem formalização de contrato. (Relatório de inspeção ao FSST, pág. 2 a 6).

Um dos principais focos de opacidade na gestão pública tem sido as empresas estatais, como exemplificado pela trajetória da TACV, onde injeções recorrentes de capital público, reestruturações e processos de privatização e renacionalização ocorreram sob alegações de contas pouco claras, contratos obscuros e justificações duvidosas nas decisões estratégicas. Apesar de esforços de reestruturação, a perceção de má gestão e dos elevados custos para o erário persistiu, abalando a confiança na capacidade do Estado de gerir ativos estratégicos.

Controvérsias semelhantes, embora talvez de menor dimensão ou visibilidade mediática, surgem periodicamente em torno de outras empresas estatais ou entidades públicas, onde a dificuldade de acesso a informações detalhadas – sobre gastos, beneficiários de contratos e critérios de seleção – levanta sérias questões de transparência.

A falta de acesso à informação é um obstáculo estrutural à transparência. Em Cabo Verde, a dificuldade em obter informações de fontes oficiais sobre a gestão pública, as finanças do Estado, as decisões administrativas ou os contratos celebrados é uma queixa frequente por parte de partidos da oposição, jornalistas, investigadores e cidadãos. A opacidade na disponibilização de dados públicos, a lentidão ou ausência de resposta a pedidos de informação e a falta de proatividade das instituições em publicar dados relevantes online restringem a capacidade de fiscalização cidadã e alimentam a perceção de que “há algo a esconder”. Esta limitação à circulação de informação enfraquece o papel da imprensa livre e da sociedade civil como vigilantes da governação.

Há, também, a inflação de cargos criados para os “boys” e o nepotismo estruturado em certos setores da função pública. Existe a perceção de que posições administrativas e contratos favorecem quadros partidários ou familiares, minando a competitividade e a credibilidade do Estado. Esta erosão das boas práticas – desde obras públicas sobrevalorizadas até concursos de emprego marcados por “amiguismo” – abala o alicerce da transparência institucional. E quando decisões importantes parecem ser tomadas nos bastidores, sob a influência de grupos de interesse ou sem fundamentação clara, a confiança no processo democrático é minada.

Terminando, a crítica aqui feita não é um mero exercício de apontar defeitos, mas uma chamada de atenção urgente para uma mudança de paradigma. A confiança dos cidadãos deve emergir da clareza das ações estatais, e a transparência na gestão da coisa pública não pode ser vista como um mero complemento decorativo, mas sim como o elemento central que legitima e fortalece todo o sistema democrático. O desafio que se impõe é, portanto, o de reconectar as instituições com o povo – não através de slogans políticos ou promessas vazias, mas por meio de ações concretas e mensuráveis que demonstrem, sem ambiguidades, que o interesse público está realmente acima de interesses particulares.

Para o efeito, é indispensável que as lideranças políticas, os gestores públicos e a sociedade civil se unam na luta por uma verdadeira transparência, onde cada ação e decisão seja submetida ao escrutínio público e à discussão aberta.

Praia, 07 de junho de 2025

*Doutorado em Economia

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