Receber a notícia de uma doença com prognóstico reservado desafia profundamente a capacidade de aceitação e a resiliência de qualquer um. Além do impacto emocional, uma doença grave e potencialmente fatal é normalmente acompanhada de intenso sofrimento físico e psicológico. Neste contexto, os cuidados paliativos oferecem um suporte fundamental para aliviar a dor e permitir que os pacientes e as famílias enfrentem a doença, o fim da vida e o luto com dignidade.
A Organização Mundial da Saúde define os cuidados paliativos como acções destinadas a pessoas com doenças graves, sem previsão de cura, com foco na melhoria da qualidade de vida. A nível mundial, cerca de 80% das pessoas que precisam não têm acesso a esses cuidados, apesar de fazerem parte dos serviços essenciais para garantir a Cobertura Universal da Saúde, um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.
Em Cabo Verde, embora ainda não exista uma rede plenamente estruturada, têm-se registado avanços significativos, com a capacitação de profissionais de saúde, a criação de equipas especializadas, a oferta de consultas específicas e a inauguração do primeiro centro especializado na ilha do Fogo.

Valéria Semedo
Uma abordagem centrada na pessoa
“Acompanhar, prevenir e aliviar o sofrimento físico, psicológico, social e espiritual dos pacientes e das suas famílias é a base dos cuidados paliativos”, explica a Coordenadora do Plano Nacional de Cuidados Paliativos em Cabo Verde, Valéria Semedo.
O objectivo, como diz aquela especialista, é assegurar a autonomia e o respeito pelo doente. “As decisões devem considerar os valores, desejos e preferências do paciente”, sublinha.
A identificação e o encaminhamento para os cuidados paliativos são feitos por profissionais de saúde e abrangem, sobretudo, doentes oncológicos, e com insuficiência cardíaca, hepática ou renal, doenças neurodegenerativas, síndromes geriátricas e doenças infeciosas. “Cada condição clínica possui critérios específicos que orientam o encaminhamento, de acordo com o quadro clínico e as necessidades individuais do paciente”, afirma.
Fases distintas, foco no conforto
Enquanto área recente da medicina, os cuidados paliativos assentam em quatro pilares: controlo de sintomas, comunicação, trabalho de equipa e apoio à família. O controlo dos sintomas e da dor é, talvez, o aspeto mais visível, mas, para Valéria Semedo, a “comunicação terapêutica” entre os profissionais de saúde, a família e o doente é um dos recursos mais valiosos, pois garante uma “esperança realista e honesta” sobre o estado do doente.
O trabalho em equipa entre médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais e os que prestam apoio espiritual também é fundamental, tendo em conta a abordagem multidisciplinar dos cuidados paliativos. Para além desses, seria desejável a integração de nutricionistas, fisioterapeutas e outros profissionais nestas equipas.
A família é essencial, pois, “além de, frequentemente, sofrer com a doença do ente querido, é o principal suporte do paciente e o elo entre os profissionais de saúde e o doente”.
A intervenção dos cuidados paliativos varia, conforme a fase da doença. “Se a esperança de vida é longa, o acompanhamento é partilhado com o médico assistente. Nos casos terminais, os cuidados paliativos tornam-se predominantes. No fim da vida, o foco é, exclusivamente, o conforto do doente e o apoio à família, inclusive no processo de luto”, esclarece a médica.
Desafios e perspetivas
Desde 2021, a Direção Nacional da Saúde tem implementado o Plano Nacional de Cuidados Paliativos, através da sensibilização, formação e investigação; organização da prestação dos cuidados; intersectorialidade e registo; monitorização e avaliação.
O objetivo é expandir a assistência a nível nacional, mas são necessários recursos humanos e financeiros, e parcerias com entidades com responsabilidade social, “para assegurar a sustentabilidade e a qualidade” dos serviços. É neste âmbito que cerca de 200 profissionais das ilhas de São Vicente e Santiago receberam formações básicas específicas em cuidados paliativos. Além disso, foram realizadas formações para cuidadores das ilhas de Santo Antão, São Vicente, Sal, Santiago e Fogo.
Este trabalho traduziu-se na criação de 16 equipas de cuidados paliativos, atualmente ativas nas ilhas de Santiago e São Vicente. De 2021 a 2024, realizaram-se cerca de 1900 consultas de cuidados paliativos, sendo 759 no Hospital Dr. Agostinho Neto. “Cerca de 90% dos doentes acompanhados são oncológicos, mas temos assistido a um aumento de pacientes com demência e insuficiência cardíaca”, afirma Semedo.
Apesar disso, os hospitais nacionais ainda não dispõem de unidades de internamento específicas para cuidados paliativos. Os doentes são internados nas enfermarias das especialidades já existentes, de acordo com a doença. Semedo ressalta que “a prioridade é manter o doente no seu ambiente social habitual, devido à importância dos vínculos familiares e sociais para a sua qualidade de vida”. O internamento, diz, é reservado a situações específicas, como casos clínicos complexos e necessidade de descanso familiar.
Apesar dos avanços, a implementação da abordagem paliativa em Cabo Verde enfrenta alguns desafios. “É fundamental fortalecer os cuidados domiciliários, reforçar o envolvimento dos parceiros, promover a melhoria da assistência nos Hospitais, continuar a capacitar as equipas e avançar com a regulamentação da área”, defende a Coordenadora, que avança ainda que está em curso a criação, em Cabo Verde, de uma pós-graduação em cuidados paliativos que irá contribuir para a consolidação da especialidade.
A nível nacional, estima-se que, anualmente, entre 2.193 e 2.606 precisem de cuidados paliativos em Cabo Verde. Esses números reforçam a urgência de se investir numa área que promove não apenas a ausência da dor, mas a humanidade e a dignidade, mesmo quando a cura já não é possível. Além disso, os cuidados paliativos contribuem para a sustentabilidade dos sistemas de saúde. “Há estudos que mostram que a sua implementação reduz os custos e promove um uso mais eficiente dos recursos”, conclui Valéria Semedo.
O papel da família e da comunidade
Para além da assistência médica, a família e a comunidade são fundamentais para assegurar e reforçar cuidados adequados. Em casa, a família ajuda a manter o bem-estar e a dignidade do doente, garantindo “continuidade nos cuidados e atenção às necessidades individuais”, mas ela também necessita de apoio.
“O impacto da doença atinge os familiares a nível físico, emocional e social, e o seu bem-estar está profundamente ligado ao do doente”, observa a coordenadora do Plano Nacional de Cuidados Paliativos, Valéria Semedo.
A médica realça ainda o papel da comunidade, seja através de apoio social, ações solidárias ou envolvimento ativo, promovendo a integração e a qualidade de vida do doente.
Entre a dor e o cuidado
Para os familiares, o apoio de uma equipa de cuidados paliativos pode ser um divisor de águas, como relata Renata (nome fictício). “O alívio do sofrimento, da angústia, da dor e dos sintomas é notório. O doente é tratado como um ser com necessidades físicas, emocionais e espirituais, o que proporciona algum conforto. A família, que às vezes sofre tanto quanto o doente, recebe apoio psicológico para lidar com a ansiedade e com a tristeza”, afirma.
Eduardo (nome fictício) afirma que a equipa tem sido fantástica. “É sempre atenciosa, ajuda a melhorar qualidade de vida do doente e da família. Além de aliviar os sintomas físicos e emocionais, tem primado pelo respeito pelos nossos valores e preservado a dignidade do nosso doente”, descreve.
Para Joana (nome fictício), testemunhar o declínio do avô, diagnosticado com cancro avançado, foi inicialmente traumático. No entanto, com o apoio recebido, a família sentiu que não estava sozinha. “Devolveram a dignidade ao meu avô. Notamos que ele ficou mais tranquilo e nós também. Apesar da tristeza, despedimo-nos num ambiente de paz, serenidade, afeto e cuidado”, reiterou.
Ilda Fortes
