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Economia

São Vicente: O terminal da discórdia

Depois de anos de promessas, powerpoints, visitas e declarações, o Terminal de Cruzeiros do Mindelo foi finalmente inaugurado. A cerimónia, no passado sábado, 21, contou com autoridades sorridentes, câmeras bem posicionadas e discursos que assegurando que o futuro ancorou em São Vicente. Só faltou o navio.

Ao fim de anos de espera, o Terminal de Cruzeiros de São Vicente “finalmente” chegou no passado sábado, 21, com a habitual falta de pontualidade das obras públicas em Cabo Verde, isto é, fora do tempo, custos muito acima do inicialmente previstos e várias outras nebulosas por responder. 

O Seven Seas Voyager, navio anunciado como a estrela do dia, na hora da verdade, decidiu dar meia volta, estragando a festa anunciada. Além da decepção, restou o embaraço dos responsáveis da ENAPOR que, aflitos, lá tiveram de se desfazer em explicações. Supostamente, o capitão do navio alegou o vento que na hora se fazia sentir. Mas todo o mindelense sabe que há vendavais bem mais perigosos, além disso, essa não seria a primeira vez que o Seven Seas Voyager iria atracar no Porto Grande.   

A metamorfose do projecto

Tirando esse percalço, restam os factos e as evidências. O que foi apresentado em 2018 como um terminal moderno, com dois postos de atracação e espaços para eventos culturais, apareceu em 2024 reduzido a um cais. Dos edifícios presentes na maquete nem sinal. 

Oficialmente, a obra inaugurada representa um investimento total superior a 32 milhões de euros (cerca de 3,5 milhões de contos), através de uma engenharia financeira dos governos de Cabo Verde e da Holanda, além do fundo OPEC (ORIO). A infraestrutura permite a atracação simultânea de dois navios de cruzeiro de até 350 metros, com capacidade total para até 6.000 passageiros. O tempo necessário para reembolsar o investimento é uma outra incógnita. 

​O novo terminal foi inaugurado, segundo os oradores do acto, com a ambição de transformar Cabo Verde num “hub estratégico” de cruzeiros no Atlântico. 

Para Ulisses Correia e Silva, a obra constitui um “grande empreendimento” ao serviço da economia de São Vicente e do país, “com o impacto que queremos, e que vai ter, no crescimento económico, na dinamização da economia local, no sector do turismo e no emprego”. Mais do que um ponto de chegada, o chefe do Governo prometeu “transformar São Vicente num destino turístico, atractivo e com centralidade na economia azul. E isso está a acontecer”.

Irineu Camacho

O PCA da Enapor, Irineu Camacho, garantiu que a inauguração “não representa apenas um projecto de construção, mas o início de uma nova fase de posicionamento de Cabo Verde no turismo internacional de cruzeiros. Celebramos este novo capítulo com uma identidade que simboliza a nossa ambição, o nosso futuro, a Mindelo Cruise Port”.

Reacções 

Diante da inauguração, o deputado do PAICV Clóvis Silva afirmou esta semana, na cidade da Praia, que houve “falhas graves” no processo e que o caso precisa ser melhor esclarecido. “Efectivamente há muitos mais problemas do que aqueles que são visíveis”, disse, reiterando as críticas do seu partido em relação ao sector marítimo. 

A UCID, por seu turno, através da deputada Zilda Oliveira, questionou também se São Vicente está preparada para responder à procura que poderá surgir com o Terminal de Cruzeiros, inaugurado no último sábado.  

“Refiro-me, por exemplo, à questão do descarte de lixo, à resposta aos turistas, às casas de banho públicas. Temos, por exemplo, a Avenida Marginal com uma calçada toda esburacada, com problemas de iluminação. Temos uma série de problemas que entendemos que deveriam ter sido resolvidos antes da inauguração”, considera.

Para a UCID, existe uma grande discrepância entre o projecto inicial e o que foi efectivamente inaugurado. Esse partido questiona se estão previstas outras fases e por que motivo se procedeu à inauguração antes da conclusão total do projecto.

ENAPOR esclarece projecto

Face às recentes especulações nas redes sociais, a ENAPOR – Portos de Cabo Verde veio a público esclarecer que o Porto de Cruzeiros do Mindelo e o projeto urbanístico Mindelo Cruise Village são iniciativas distintas, com natureza, objetivos e financiamentos totalmente independentes.

Segundo o comunicado, o Porto de Cruzeiros, já concluído, representa um investimento de cerca de 26,5 milhões de euros, cofinanciado por Cabo Verde, Países Baixos e Fundo OFID. A infraestrutura contempla um cais de 400 metros, serviços alfandegários e um Welcome Center para apoio logístico e turístico.

Em contrapartida, o Mindelo Cruise Village, idealizado como proposta complementar durante os estudos da consultora americana Bermello & Ajamil, é um projeto imobiliário ainda em fase preliminar, sem financiamento garantido. 

Com um custo estimado em 60 milhões de euros, visa explorar a frente marítima com hotéis, residências e zonas comerciais, mediante parcerias público-privadas que ainda estão por estruturar.

A ENAPOR esclarece que nenhum reordenamento urbanístico foi contemplado no pacote original do terminal de cruzeiros, e que as diferentes fases do Cruise Village são apenas projeções em estudo, baseadas em três variantes arquitectónicas.

César Freitas

 

César Freitas

Terminal de Cruzeiros: promessa global ou ilha urbana?

O arquitecto César Freitas alerta que sem uma visão de cidade e integração com a vida quotidiana, o terminal de cruzeiros do Mindelo pode ser tão isolado quanto imponente. Como diz, por detrás da modernidade desse novo equipamento, resta uma batalha menos visível que é a de garantir que “Mindelo continue a ser Mindelo”, isto é, “uma cidade com alma e com gente”. 

 “Não se trata de negar a modernidade, mas de saber se ela respeita a memória construída da cidade”, diz o entrevistado do A NAÇÃO. “Temos dois instrumentos fundamentais suspensos: o Plano Director Municipal e o Plano da Orla Marítima. Sem eles, estamos a navegar sem bússola.”

Cidade viva ou vitrine estéril?

Freitas visualiza um espaço com escritórios flexíveis de frente para a baía, habitação de qualidade para residentes e emigrantes, espaços de restauração e cultura com identidade cabo-verdiana, lojas de artesanato genuíno, e zonas de lazer abertas à comunidade. Também propõe centros de formação profissional, microserviços de bem-estar, escolas de arte, uma biblioteca ligada à história marítima da ilha e locais para concertos e eventos comunitários. 

“Não podemos aceitar que aquilo se torne apenas um parque de navios”, afirma. “Só há uma forma de o terminal fazer parte do Mindelo: se o mindelense sentir que aquele espaço lhe pertence.” 

Segundo Freitas, os benefícios económicos do terminal são inegáveis: mais visitantes, maior circulação de receitas, oportunidades para pequenos negócios, e potencial de fixação de jovens qualificados. Mas os riscos são tão reais quanto as promessas. “O turismo é uma indústria volátil. Uma crise global, e os cruzeiros deixam de vir. E depois, o que nos sobra?”, questiona. 

E para que o investimento não se transforme num “elefante branco”, o nosso entrevistado defende a construção de uma visão de longo prazo para o turismo e o desenvolvimento urbano da ilha. Isto passa pelo reforço da capacitação profissional, desde guias turísticos a artesãos, e o estabelecimento de parcerias público-privadas-comunitárias que mobilizem investimento estruturado com impacto local genuíno. 

“Se não cuidarmos da qualidade do serviço, da fiscalização, da sustentabilidade ambiental e da equidade no acesso às oportunidades, o terminal vai falhar no seu propósito”, alerta.

Ferramenta 

A nossa entrevista encerra com uma reflexão incisiva: o Terminal de Cruzeiros é uma ferramenta poderosa – mas, como toda ferramenta, pode construir ou destruir. 

“Temos aqui um projecto com potencial transformador. Mas se não houver visão estratégica, integridade na gestão e compromisso com a cidade real, corremos o risco de perder uma oportunidade histórica”, conclui César Freitas. 

João A. do Rosário 

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