Por: Jorge Eurico*
Cabo Verde conquistou a sua independência há cinquenta anos. Um orgulho nacional. É justo e necessário reconhecer as suas vitórias: estabilidade política, instituições que funcionam, alternância democrática e uma presença respeitável na cena africana e internacional. Essa é a narrativa oficial. Mas há também uma realidade que não cabe nos discursos e que precisa de ser dita.
Antes de mais, permita-me que me apresente: Sou filho da diáspora, com raízes profundas na Ilha do Fogo. Nasci em Angola. Mas o sangue e a história destas ilhas correm em mim, assim como a esperança e a exigência por um País que ainda deixa muitos à margem. A independência de Cabo Verde não foi um ponto final. Foi um ponto de partida. E a “gota que falta” é precisamente essa: A participação real, o desenvolvimento justo e a dignidade para todos.
A promessa da independência, cinquenta anos depois, não está por cumprir apenas nos discursos. Está no dia-a-dia das famílias que vivem nas ilhas periféricas, onde o acesso à saúde, à educação ou ao saneamento continua profundamente desigual. Santa Catarina enfrenta ainda problemas estruturais que contrastam com os investimentos visíveis na cidade da Praia. A distância entre os centros de decisão e os lugares da resistência é cada vez mais sentida. E não apenas em quilómetros. A conectividade entre as ilhas, por via marítima ou aérea, é precária.
Como tão bem disse Ovídio Martins no seu poema que se tornou voz dos esquecidos, “Nós somos os flagelados do vento leste”. Essa frase ecoa na pele das comunidades das ilhas periféricas, que suportam as intempéries da seca, do abandono e da desigualdade, sofrendo o vento da exclusão que teima em não ser enfrentado
Apesar do crescimento económico (5,1% em 2023, segundo o FMI), a economia cabo-verdiana permanece frágil, altamente dependente do turismo e de fluxos externos. O desemprego jovem aproxima-se dos 32%. A emigração continua a ser o único caminho para muitos. Nos últimos vinte e quatro meses, a saída de jovens de Cabo Verde para o estrangeiro tem-se revelado absurdamente preocupante. A mão-de-obra vai escasseando. Há falta de canalizadores, pedreiros, carpinteiros e similares. Um país onde tantos partem para sobreviver ainda não realizou plenamente a ideia de liberdade. A diáspora continua a ser um pilar silencioso: Contribui com cerca de 12% do PIB em remessas. Promove o país. Envia ajuda. Investe. Mas não decide. Nem é chamada a participar de forma estruturada na governação.
Desde ontem, 1 de julho de 2025, Cabo Verde foi oficialmente classificado como país de rendimento médio-alto pelo Grupo Banco Mundial. Um marco que merece reconhecimento, pois atesta progressos importantes alcançados ao longo das últimas décadas. Mas esta classificação não pode ocultar as desigualdades profundas e os desafios estruturais que persistem, especialmente nas ilhas periféricas e entre os jovens, cujo desemprego continua alarmante. Este paradoxo entre o estatuto económico e a realidade social evidencia que a verdadeira independência, aquela que se traduz em Justiça e dignidade para todos, permanece uma promessa por cumprir.
Tomemos um exemplo concreto. Em 2022, um jovem engenheiro cabo-verdiano, residente em Roterdão, apresentou às autoridades um projecto inovador de dessalinização de água a baixo custo, adaptado às condições do arquipélago. O silêncio foi absoluto. Não por falta de mérito, mas por falta de canal. Porque a diáspora ainda não tem lugar nem voz. E histórias como esta repetem-se em Boston, Paris, Lisboa ou Luanda. A diáspora pensa e propõe. Investe. Mas raramente é ouvida.
O mesmo se aplica a muitas mulheres da diáspora: Mães, avós, cuidadoras e chefes de família que sustentam, com remessas e sacrifícios, os lares nas ilhas. São pilares invisíveis do quotidiano cabo-verdiano. Mas continuam afastadas das decisões. Não figuram nos retratos do poder, nem nas homenagens oficiais.
É neste ponto que a frase de Amílcar Cabral ressoa com toda a força: “Lutamos por uma vida melhor e mais justa para todos”. Essa Justiça, hoje, exige mais do que palavras de ocasião. Exige coragem política para redistribuir oportunidades, descentralizar o poder, ouvir a juventude e tratar a diáspora como parte essencial do Estado cabo-verdiano, não apenas como depósito sentimental ou monetário.
Cerca de 40 mil cabo-verdianos vivem em situação de insegurança alimentar. O dado é do ano passado. Foi revelado pelo Programa Alimentar Mundial (PAM). A seca e a desertificação agravam uma realidade já marcada por desigualdades sociais e regionais. As soluções de emergência não substituem políticas públicas de longo prazo.
E a promessa de um país para todos não se realiza sem enfrentar os contrastes entre a Praia e São Nicolau. Entre o Sal e a Brava. Entre os de cá e os de lá.
Não escrevo para negar o que foi feito. Escrevo porque quero mais. Meio século de independência depois, palmas já não bastam. Esse tempo já passou. É preciso um novo ciclo: mais justo, mais ousado, mais distribuído. Cabo Verde deve construir um modelo de desenvolvimento que não exclua nem centralize. Que convoque todos para um projecto comum. Um projecto que deve contar, incondicionalmente, com o contributo dos habitantes das dez ilhas e dos cabo-verdianos espalhados pelos quatro cantos do mundo. Djunta mon!
Também tenho direito à minha gota de água. E exijo esse direito com a humildade de quem herdou o sonho e a lucidez de quem viveu as consequências do silêncio. Cabo Verde não é apenas um caso de sucesso: É uma promessa ainda por cumprir.
A maior homenagem possível neste cinquentenário não é o desfile. É a acção. A diáspora, considerada a décima primeira ilha, tem de participar dessa acção. Não pode ser deixada de fora. Não quer apenas ser lembrada. Quer ser chamada. Quer participar. Quer construir. É uma questão de inclusão. Porque a liberdade não se celebra, realiza-se. Materializa-se.
*Jornalista radicado no Canadá
