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Sequela de meio século de “autonomia” tutelada: Entre os vícios constituintes da soberania e a prescrição da ética – notas típicas

Por: José Mendonça Monteiro 

Vivi meus primeiros anos sob um manual pedagógico monocromático, impregnado de uma única doutrina interpretativa, quase como se o pluralismo de ideias fosse cláusula proibida. Fui-me desenvolvendo sob a vigilância constante do monopólio institucional, este que, em nome do suposto “interesse superior do menor cidadão”, exercia um amor jurídico típico: concentrado, vinculativo e, não raro, de natureza opressiva. Nesta solene ocasião, invoco a todos a erguerem-se e, em uníssono, entoarem comigo o cântico normativo, como bons súbditos de um afeto estatal:

Sol, suor, o verde e o mar,

Séculos de dor e esperança;

Esta é a terra dos nossos avós!

Fruto das nossas mãos,

Da flôr do nosso sangue:

Esta é a nossa pátria amada.

Viva a pátria gloriosa!

Floriu nos céus a bandeira da luta.

Avante, contra o jugo estrangeiro!

Nós vamos construir

Na pátria imortal

A paz e o progresso!

Nós vamos construir

Na pátria imortal

A paz e o progresso!

Ramos do mesmo tronco,

Olhos na mesma luz:

Esta é a força da nossa união!

Cantem o mar e a terra

A madrugada e o sol

Que a nossa luta fecundou.

Viva a pátria gloriosa!

Floriu nos céus a bandeira da luta.

Avante, contra o jugo estrangeiro!

Nós vamos construir

Na pátria imortal

A paz e o progresso! (Cabral, Esta é a nossa pátria amada)

Logo após o levantamento popular que arquivou, por manifesta perda de eficácia histórica, o regime de cariz marxista-leninista, instaurou-se com grande pompa o que se auto-intitulou como um movimento democrático. Alegavam os seus promotores que estávamos perante uma governação de matriz pluralista e humana nos termos e para os efeitos do artigo da esperança coletiva. Contudo, bastou folhear as páginas seguintes do processo democrático para reconhecer que os autênticos “sujeitos ativos” da primeira república democrática não eram mais do que reincidentes políticos do regime anterior.  

Cinco anos volvidos e com a moral do povo já em sede de pré-falência técnica emergiu a chamada Convergência Democrática, um movimento que alegava em sua petição inicial que lutava pelo desenvolvimento e inclusão social. Porém, uma análise sumária das provas fotográficas dos órgãos de soberania denunciava uma litispendência de nomes.

Já na viragem do milénio, quando o povo começava a suspeitar de que o “Estado Democrático de Direito” era só um princípio e não uma prática, surgiu o movimento da Renovação Democrática, qual petição de embargo declaratório contra a rotina política. Alegavam que a democracia precisava de “atualizações regulares”, como se de um antivírus governativo se tratasse. Eu, já escaldado por tantos acórdãos inconclusivos, só pude anotar no meu diário: “Renovar não é necessariamente mudar às vezes é apenas reeditar as amizades políticas. Portanto, volto a convocar-vos, nobres patriotas e réus deste sistema, para que de pé entoemos juntos o nosso atual refrão:

Canta, irmão

Canta, meu irmão

Que a liberdade é hino

E o homem a certeza

Com dignidade, enterra a semente

No pó da ilha nua

No despenhadeiro da vida

A esperança é do tamanho do mar

Que nos abraça

Sentinela de mares e ventos

Perseverantes

Entre estrelas e o Atlântico

Entoa o cântico da liberdade

Canta, irmão

Canta, meu irmão

Que a liberdade é hino

E o homem a certeza!, ( Silva; Lopes, Hino da liberdade)

Mal cessou a vigência do regime que privou a soberania popular em nome de um punhado de libertadores épicos (e já senis), a herança nem teve o previlégio de se descansar jacente. Procedeu-se logo, à partilha extrajudicial da res publica. A plateia internacional, os veneráveis gigantes democráticos, aplaudiu: quanto mais liberal e ambicioso a elite dirigente, mais ousada se torna a celebração de acordos de exploração extraterritorial, afinal, o neocolonialismo já não vem de uniforme, mas sim de fato e gravata, com cláusulas leoninas e fundos de investimento. A democracia, até trouxe consigo a tão prometida “transparência”, porém, ainda longe da transparência de cristal suíço, e sim igual a certos vidros e pára-brisas fumadas das viaturas públicas e privadas, do país ostentadas pelos Cristãos  adúlteros. 

Durante cinquenta anos, sim, cinquenta, fomos mandatários da boa vontade estrangeira, auditores das políticas impostas, e operadores logísticos dos recursos alheios. Não criamos riquezas; apenas carimbamos cheques de terceiros com o selo da soberania local. E agora, perante o rumor do fim do patrocínio natalício da Millennium Challenge Corporation (MCC), que nos trouxe ilusões, somos chamados à prova final: governar com o que é nosso. Sol? Temos. Mar? Até sobra. Vento? Em abundância. Localização estratégica? Sim, mas ainda sem tarifa. Céu? Se alguém pagar, é nosso também. Quem sabe. Já vimos o Vietname, o Ruanda e o Botsuana fazerem isso. E nós, insulares teimosos e resilientes, vamos continuar à espera de relatórios da OCDE para começar?

E quanto à corrupção, essa figura penal que por cá virou entidade metafísica? A legislação sobre declaração de património? É quase mitológica: existe no papel, mas os seus efeitos processuais são invisíveis à lupa do titular da ação penal. Quantos foram os não-declarantes punidos por enriquecimento ilícito? Entre ninguém e coisa nenhuma. 

A res nunca foi propriamente “pública”. É do publico que traz apelido com pedigree, com assento vitalício no livro de honra das árvores genealógicas plantadas logo após a cessação do domínio colonial. É um regime meritocrático… desde que se herde o mérito. Altos cargos públicos, não é procurado; é transferido inter vivos ou por causa mortis. Nas raríssimas exceções em que o rebento da elite não é investido como Ministro da República, ao menos garante-se-lhe um cargo com imunidade diplomática, uma cadeira no Parlamento, ou uma assessoria de Estado com nomeação em Diário da República, como manda a boa técnica de perpetuação patrimonial e simbólica do poder. A administração pública foi, de fato, transformada num instituto sucessório camuflado de currículo.

Aliás, Cabo Verde, é o único país no mundo em que um vulcão (sim, o Monte-Jora) figura, na prática, como propriedade de uma dinastia com sobrenome tradicional, não do Estado. E como se não bastasse a apropriação fundiária da terra fértil e da lava quente, agora até as águas interiores da costa estão sob risco de se tornarem bens indivisíveis em herança pré-anunciada, na contramão de qualquer princípio republicano.

Mas voltemos à política, essa ciência que, segundo Aristóteles, é natural ao ser humano. Diz o estagirita que “o homem é por natureza um animal político”, ao que Platão responde com a advertência atemporal: “o castigo dos bons que se abstêm da política é serem governados pelos maus.” Uma Independência, que, insiste em subestimar e a promover a mediocridade como critério de inclusão e  a Democracia, que,  manipula  com promessas de participação, enquanto as decisões reais são tomadas nos bastidores por quem domina o jogo desde o berço.

O “ Guerreiro”, interroga, com o peso dos anos e das frustrações constitucionais: foi para isto que se hasteou as bandeiras da independência/Democracia? O  Zezé de Nha Reinalda cantou: “ KA TEM NINGUÉN KI CRÊ NHA TERRA MÁZ KI MI, BASTA DÁM UM TXON NA PRAÍNHA I GARANTI NHÁ MUDJER TRABADJU NA TACV”… bem, eu pediria: a independência económica/financeira, a democracia efetiva e a justa distribuição de riquezas. Não perdi a esperança. Mas perdi, talvez, a ingenuidade. Porque a independência/Democracia não é só um ato político, é uma luta diária. Portanto, demando que, pela última vez, de joelhos, entoem comigo!

 Nôs Cabo verde di sperança (…);

Mas sperança  ka é só di xinta spera;

Ka nu dexa tudo só pa stado fassi(…);

Nu djunta mó nu compu nós terra;

Cada um di nós é um Cabral (…);

Nô Cabo verde vive só di sperança;

Sperança ma um dia nu tá vive dreto;

Sperança ma um dia nu pode símia;

Nu côdji, nu kúme (…);

Sperança tá continua ti ki dia?

Ki dia ki nos Cabo ta vira Verdi?, ( Tavares, Nós Cabo verde di sperança)

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