A coreógrafa cabo-verdiana Marlene Freitas abriu, no passado dia 5 de Julho, o Festival d’Avignon, em França, onde são esperados mais de quarenta espectáculos de teatro, dança, ópera e multidisciplinares. A decorrer até ao dia 26 deste mês, Marlene Freitas invoca a mais emblemática obra da literatura clássica árabe, As Mil e Uma Noites, como ponto de partida na busca pela sobrevivência e os mistérios da condição humana.
Marlene Freitas inaugurou a programação desta edição do Festival d’Avignon com o espectáculo ‘Nôt’ – inspirado em “As Mil e Uma Noites”, clássico da literatura árabe, língua convidada desta edição – no Pátio de Honra do Palácio dos Papas, que ficará em cena até ao dia 11. Todo o espectáculo aborda o acto de sobrevivência, que também está contido nessa obra da literatura em língua árabe. O folheto de apresentação da obra, recupera a odisseia de Scherazade: “Depois de traído, o sultão promete matar toda a nova esposa na manhã seguinte.”
Para contrariar este ciclo, Sherazade casa com ele e conta uma história todas as noites, mantendo em aberto o seu final, na manhã, para adiar o seu destino. Marlene de Freitas vê esta obra-prima da literatura árabe como um acto de sobrevivência. Enraizados na tradição oral, estes contos conservam a energia de histórias que circulam constantemente e são sempre reinventadas. A coreógrafa cabo-verdiana traduz este fluxo e palavras – entrelaçadas, contraditórias, incessantes – em movimento, transformando o palco num espaço onde o vício e a virtude, o grande e o pequeno, o desejo e a sua sombra se entrechocam. (…) ‘Nôt’ acrescenta mais uma noite ao infinito.”
Em declarações à imprensa, Marlene Freitas disse ter logo pensado em As Mil e Uma Noite – que ela leu entre os 13 e os 14 anos – assim que soube que o árabe seria a língua homenageada na edição deste ano deste festival. Na altura, contou, pensou que o livro não seria apropriado para a sua idade. Mas terá ficado impressionada com tudo o que colheu da leitura, dos persas, indianos, árabes, e a tradição oral de contar histórias. “Estou particularmente interessada nesta tensão entre a oralidade e a palavra escrita, entre aquilo que é imóvel e o que está em movimento.”
‘Nôt’ (o espectáculo) é também um mergulho no escuro, na noite, no mais abrangente sentido metafórico do mundo, que esbate a nossa percepção e onde ficção e realidade se tornam um só. O espectáculo foi inspirado em vários aspectos de As Mil e Um Noites, como revela Marlene, em especial na sua opção para o enquadrar e dar o pontapé de saída. E aqui, diz, recorreu “ao conto inicial que dá início ao conjunto das histórias, como uma ‘torneira’ de histórias da qual a água nunca pára de correr. Esta primeira narrativa fala do confronto com a morte, do instinto de sobrevivência, o apego à vida e ao poder da criatividade.
Coreografar uma obra literária
“Para além de se autorecriar, a história tem o poder de fazer chegar a um novo dia. E foi isto que mais me tocou.” A designação do espectáculo como ‘Nôt’, palavra em crioulo para Noite, explica a coreógrafa sanvicentina, revela igualmente o seu interesse nas representações da cama e do quarto de dormir na Idade Média, pela simples razão de que a história decorre num quarto, durante a noite.
O primeiro grande desafio, confessa, foi “como extrair uma coreografia a partir de uma obra literária desta magnitude.” Histórias que falam de vidas suspensas, por um lado, um rei preso à sua decisão de matar, para além de outra pessoa prisioneira e exigindo justiça. “A primeira questão era, quem poderia ser esta Scherazade, esta contadora de histórias, no nosso tempo? Quem é o prisioneiro ou o cativo hoje? Qual o interesse em contar uma história de sobrevivência nos dias de hoje?” Marlene revela como a presença de forças opostas, tanto nos relatos como nos nossos sonhos, mexem profundamente com ela.
“Tentei focar-me naquilo que estes relatos têm em comum: o cativeiro, mas também o desejo, as histórias de amor, assim como relatos de guerra e narrativas de viagem. Jorge Luís Borges costumava dizer que As Mil e Uma Noites é sobre acrescentar uma noite mais ao infinito. Porque mil noites já é, em si mesmo, infinito. Gosto desta ideia de continuidade, tanto num sentido concreto como coreográfico. Não se pode prever o que vem a seguir. Há algo que está para sempre por resolver, algo que continua a resistir.”
Por seu lado, o actor, encenador e dramaturgo português Tiago Rodrigues, director artístico do festival, estreia a sua nova peça, “La distance”, um dos momentos mais esperados deste edição. Estão previstas 17 apresentações desta obra, entre os dias 7 e 26, no L’Autre Scène du Grand Avignon.
Outra presença cabo-verdiana no festival é a cantora Mayra Andrade, que traz a Avignon o concerto “reCanto”, no Pátio de Honra do Palácio dos Papas. O DJ e produtor português Branko encerra o festival, no dia 26, em La FabricA. Ao todo serão 300 apresentações de 42 produções, das quais 32 são estreias.
De São Vicente para os palcos do mundo
Natural de São Vicente, Marlene de Freitas tem já uma carreira de sucesso, primeiro como bailarina e depois como coreógrafo, nos palcos internacionais. Recebeu várias distinções, como o Leão de Prata de Carreira, na 12ª Bienal de Veneza de Dança, em 2018. Começou por praticar ginástica rítmica tendo mudado aos 13 anos para a dança, entrando para o grupo Compass, em Mindelo.
Depois de se mudar para Portugal, foi co-fundadora da estrutura cultural P.O.R.K, tendo assinado coreografias como Paraíso-colecção privada (2012/13) e Marfim e carne- as estátuas também sofrem (2014). Trabalhou com coreógrafos internacionais como Emmanuelle Hyunn, loic Touzé, Tânia carvalho, Boris Charmatz, entre outros.
É considerada uma das mais talentosas artistas e coreógrafas da sua geração, com trabalhos que combinam o drama e a comédia, o burlesco, muito elogiados pela crítica internacional, sobretudo pela sua experessividade e criatividade.
Reconhecimentos e Prémios
2017 – Galardoada com a Medalha de Mérito do Governo de Cabo Verde.
2018 – Recebeu o Leão de Prata após a apresentação do espetáculo Bacantes – Prelúdio para uma purga durante a 12ª Bienal de Dança de Veneza, Itália.
2020 – Prémio de Melhor Espetáculo Internacional de Les Prémis de la Critica d’Arts Escéniques de Barcelona
2021 – Prémio Chanel Next
Joaquim Arena
