Por: Pedro Matos
No âmbito da Festa do Queijo, reafirmamos o compromisso de resgatar elementos culturais que fazem parte do mundo rural, e a partir dos quais a nossa história subsiste, ganha conteúdo e sentido de pertença. No ano passado, o destaque foi o txapalati, instrumento utilizado para afugentar pássaros que ameaçavam as plantações durante o período das chuvas. Nesta edição, voltamos o trato para o buli di leti (boli).
Conhecida noutros lugares como cabaça, fruto das plantas da família Cucurbitaceae, trata-se de um recipiente versátil e multiuso. Vai desde o fabrico de instrumentos musicais, como o nosso cimbó, símbolo resistente da herança africana; cabaça está na decoração, no artesanato; e utensílios domésticos para armazenar grãos, guardar frutas, servir saladas ou conservar líquidos.
O nosso buli, da espécie trepadeira, após esvaziado, transforma-se num recipiente natural para transportar e conservar líquidos. Nele o leite guardado, podia ser consumido fresco ou mais tarde, sem perda de qualidade. Em zonas rurais, onde não havia refrigeração, o buli era uma forma natural e eficiente de manter o leite em bom estado de consumo.
Antigamente, na produção do queijo, os utensílios vinham da cabaça: o solidor usado na ordenha e, no seu orifício alongado, colocavam-se fios de sisal tratados, que serviam de filtro para o leite, conduzido diretamente para o grande recipiente banganha, feito também de cabaças maiores. Depois da recolha, o leite era moldado pelas mãos firmes do produtor, que utilizava o carmã para juntar a massa e dar forma ao queijo.
Enquanto isso, no canto arejado do funku do pastor, o leite destinado ao seu próprio alimento permanecia no buli, onde ocorria um processo transformador, graças à composição interna do fruto, conferindo-lhe outras propriedades por via de uma fermentação natural. Na hora da refeição, o pastor pegava o buli e balançava-o com cuidado, uma prática simples, mas simbólica, como que a acordar o leite. Quem gosta de leite drumido sabe que não se trata de leite azedo. É o leite que ficou djongodo no buli. Em repouso, encorpando-se, ao manto do buli, caindo sonolentamente, junto o lodo, para o prato que alimenta ricamente o homem e a mulher do campo.
Esse leite acompanhava-se com batatas assadas, uma boa papa e tantos outros pratos. Ninguém recusava um cuscuz nóbu ku leti di buli. Onde havia um buli di leti, não havia fome. Esse simbolismo animava o povo mesmo nos tempos de penúria, em que uma gota de leite ajudava a enganar a fome, antes que a fome matasse o povo.
A cabaça, na verdade, ocupa um lugar privilegiado nas grandes sociedades africanas, presente nos espaços e rituais mais significativos, compondo um universo rico de música, arte e utensílios de transporte de usos múltiplos. No entanto, no nosso arquipélago, o vento da modernidade veio e atropelou muitos desses utensílios, retirando-os da nossa convivência e utilidade pela sequela colonial de jogar tudo o que é nosso fora, por representar um mundo simplista e arcaico e uma vida agreste, cujo conteúdo não merece resgate e exibição.
No meio do atropelo às antiguidades, a cabaça, originária do nosso continente, foi escanteada para o baú da história cabo-verdiana, de igual modo o próprio cimbó, instrumento musical de herança africana — o mais antigo conhecido em Cabo Verde, trazido pelos escravizados africanos no contexto do tráfico negreiro.
O momento, todavia, é oportuno para adotar o cultivo e a valorização da cabaça, cuja contribuição perpassa história, cultura e economia. Especialmente quando tem se importado discursos ocos de sustentabilidade, enquanto pouco se faz para integrar práticas tradicionais e produtos do nosso povo numa discussão mais fecunda, e na modelagem de uma política que esteja comprometida com as raízes e causas do povo das ilhas.
Homenageamos a cabaça também no contexto da Lei nº 22/X/2023, de 18 de abril, que estabelece o regime jurídico para a comercialização, importação, distribuição e produção de plásticos de utilização única, com o objetivo de reduzir a poluição e promover práticas sustentáveis. Embora a lei trate apenas de sacos plásticos, faz-se valoroso considerar a inclusão das potencialidades e versatilidades da cabaça como alternativa ecológica às garrafas de plástico.
A cabaça talvez seja um dos poucos materiais que simbolizam a sustentabilidade de forma orgânica: é natural, biodegradável, e substitui com eficácia muitos objetos de plástico, reduzindo a dependência de materiais industriais e poluentes. Tem baixo custo de produção, já que pode ser cultivada com águas residuais do uso doméstico, o que é estratégico para um país com falta de água. Nesse sentido, pode ser uma alternativa viável para geração de renda entre comunidades rurais severamente impactadas pelas mudanças climáticas, essencialmente as mulheres e jovens, cujos produtos artesanais podem ser absorvidos para dinamizar também os setores cultural e turístico.
