Por: Diltino Ferreira*
Apesar de aparentes avanços na valorização da língua cabo-verdiana por meio de políticas linguísticas recentes, é crucial adotar uma abordagem crítica para que tais medidas não camuflem a persistente marginalização da nossa língua materna. A Constituição da República de Cabo Verde (2010), no artigo 9.º, afirma que “o Estado promove as condições para a oficialização da língua materna cabo-verdiana, em paridade com a língua portuguesa”. No papel, isso está em consonância com a Declaração Universal da UNESCO sobre os Direitos Linguísticos. Contudo, na prática, o que se observa é um pseudoavanço – um progresso mais estético do que efetivo, que mantém a língua cabo-verdiana num lugar secundário.
A situação de diglossia ainda vigente ilustra bem essa contradição. A língua portuguesa, com seu prestígio institucional, convive com uma valorização apenas simbólica do cabo-verdiano. A introdução da disciplina de Língua Cabo-verdiana no ano letivo de 2022/2023 é um marco histórico, mas seu caráter opcional, experimental e tardio (somente a partir do 10.º ano) denuncia uma concessão simbólica, e não um compromisso estrutural. Ensinar a língua materna nos últimos anos de escolaridade – e sob abordagem semelhante à de uma língua estrangeira – contradiz a pedagogia linguística mais básica e reforça a ideologia que relega a língua cabo-verdiana a uma posição de menor prestígio. Simultaneamente, a proposta de elevar a língua portuguesa a património imaterial da nação, no mesmo ano letivo, evidencia a centralidade do português no imaginário político. O português é, para a maioria da população, uma língua adquirida em contextos formais, e não materna. Enquanto isso, o inglês e o francês são ensinados desde cedo de forma sistemática. A língua cabo-verdiana, por outro lado, continua restrita a projetos-piloto e discursos de ocasião. Essa disparidade revela que o problema é mais político do que pedagógico.
Outro aspecto relevante é o lançamento, em fevereiro de 2025, do primeiro manual escolar de Língua Cabo-verdiana, que adotou uma abordagem pandialetal. A intenção de inclusão é compreensível, mas, ao tentar nivelar todas as variedades, o manual dilui traços específicos de cada uma e adota o que não representa nenhuma variedade viva e apaga a riqueza fonológica e simbólica da língua. Tal artificialização pode gerar distanciamento em vez de pertencimento.
Em entrevista ao Expresso das Ilhas (março de 2025), o atual Ministro da Educação afirmou que é preciso “dar tempo ao tempo” e se referiu ao português como “idioma igualmente identitário”. Essa formulação revela um deslocamento perigoso: confundir a língua da escola com a da identidade. A língua materna não é a que se aprende na escola, mas a que nos constitui afetivamente desde a infância. Ao atribuir à língua portuguesa esse papel, corre-se o risco de deslegitimar a matriz identitária cabo-verdiana. Nesse contexto, precisamos questionar até que ponto o planeamento linguístico atual não esconde, sob o verniz da valorização, um projeto de assimilação. A padronização desconectada da realidade sociolinguística e o esvaziamento simbólico da língua são estratégias que, paradoxalmente, promovem a língua cabo-verdiana e, ao mesmo tempo, a neutralizam. Não se trata apenas de reconhecer o cabo-verdiano como língua oficial, mas de legitimá-lo como ferramenta de ensino, produção de conhecimento e expressão cultural.
A metáfora da Torre de Babel, sintetiza esse impasse. Na tradição bíblica, a confusão de línguas impede a construção da torre. Em Cabo Verde, a confusão não vem da diversidade linguística, mas das políticas incoerentes que a cercam. A diversidade interna da língua cabo-verdiana não é obstáculo, mas riqueza. O verdadeiro entrave são as decisões políticas que mascaram avanços e alimentam a ideia de que a valorização da língua cabo-verdiana é inviável. Enquanto as políticas forem formuladas de cima para baixo, sem escuta real das comunidades linguísticas, a construção da nossa “torre” – a língua cabo-verdiana plenamente reconhecida – continuará inconclusa. É preciso que o planeamento linguístico parta do chão onde vivem os falantes reais, com suas vozes múltiplas e legítimas. Só assim deixaremos de reproduzir a nossa própria “Babel crioula”, na qual se fala, canta e sente em crioulo, mas ainda se hesita em assumi-lo como fundação da nação.
*Doutor em Linguística
