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Cabo Verde supostamente mais rico, mas com muito mais pobreza extrema

Por: João Serra*

O Banco Mundial (BM) elevou, a 1 de julho corrente, a classificação de Cabo Verde, de país de rendimento médiobaixo, para médioalto, refletindo um aumento do rendimento per capita.

Adianta ainda que a reclassificação “reflete um aumento de 16,8 % do rendimento nacional bruto (RNB) per capita entre 2023 e 2024, traduzindo a evolução económica do país”, nomeadamente “um crescimento real de 7,3 % registado em 2024”, impulsionado sobretudo pelo turismo.

Acrescenta também que contribuíram para esse cálculo uma menor inflação interna e uma revisão em baixa da população nacional, “com uma diminuição de 12,8 %, segundo dados das Nações Unidas”, o que teve “impacto direto no cálculo do RNB per capita”.

Teoricamente, a reclassificação para país de rendimento médioalto reforça a confiança dos investidores internacionais, abrindo portas a um maior fluxo de capitais privados e a condições mais favoráveis no acesso ao financiamento em mercados de dívida, e eleva simultaneamente a reputação global de Cabo Verde, potenciando parcerias estratégicas e projetos de cooperação que aceleram o desenvolvimento sustentável.

Contudo, uma análise mais atenta e desapaixonada revela que este “upgrade” pode ser, na verdade, uma miragem, como a seguir veremos, sem entrarmos na questão das reservas, nossas e de alguns técnicos seniores do INE, quanto à fiabilidade dos dados estatísticos oficiais.

Em primeiro lugar, importa sublinhar que o critério do BM assenta no RNB per capita em dólares norteamericanos (USD), calculado pelo método Atlas – uma técnica que suaviza flutuações cambiais para tornar as comparações internacionais mais estáveis ao longo do tempo. Para 2024, o limiar mínimo para a categoria de médioalto rendimento situase em 4 256 USD. As estimativas preliminares apontam para que Cabo Verde tenha atingido 4 300 USD de RNB per capita, ainda que esses valores considerem apenas dados provisórios do INE, sem a revisão técnica final. Como é sabido, o INE tem frequentemente revisto em baixa as suas estimativas provisórias quando publica os dados definitivos das contas nacionais. Foi o que aconteceu, por exemplo, com a taxa de crescimento do PIB em 2022, que passou de 17,7 % para 15,8 %, uma correção em baixa de quase dois pontos percentuais. Assim, a decisão mais sensata seria esperar pela publicação de dados definitivos.

A mudança de estatuto de Cabo Verde, embora possa ser apresentada como um sinal de sucesso, acarreta uma série de desafios e perdas significativas. Historicamente, os países de rendimento médiobaixo beneficiam de condições mais favoráveis no acesso a financiamento externo, a programas de ajuda ao desenvolvimento e a parcerias internacionais estratégicas. Com a nova classificação, Cabo Verde arriscase a ter mais dificuldades nas condições de acesso a esses recursos.

Talvez a consequência mais flagrante e politicamente sensível desta reclassificação resida no seu impacto sobre a propaganda oficial, particularmente no que diz respeito às taxas de pobreza. Nos últimos anos, a narrativa governamental pautouse pela redução da pobreza como um dos seus maiores êxitos. Com a subida à categoria de país de rendimento médioalto, os patamares de pobreza, segundo as próprias metodologias de cálculo das organizações internacionais, são automaticamente revistos em alta.

É aqui que o paradoxo se torna mais evidente e cruel. O BM utiliza diferentes limiares monetários para definir a pobreza consoante o grupo de rendimento em que o país se insere. Os limiares foram atualizados em junho deste ano. Para países de baixo rendimento, a linha internacional de pobreza passou de 2,15 USD para 3 USD por pessoa e por dia, em paridade do poder de compra (PPC) de 2021. Para países de rendimento médiobaixo, esse limiar subiu de 3,65 USD para 4,2 USD, e para os de rendimento médioalto, o valor aumentou de 6,85 USD para 8,3 USD.

Isto significa que, de um momento para o outro, um número considerável de caboverdianos, que antes não eram considerados em situação de pobreza (incluindo pobreza extrema) pelos critérios de rendimento médiobaixo, passam a sê-lo pela nova métrica. Na prática, cidadãos que antes estavam acima da linha da pobreza, ou da pobreza extrema, veemse agora inseridos nessa categoria apenas por uma alteração estatística e não por uma deterioração real das suas condições de vida. Este “efeito estatístico” cria um paradoxo embaraçoso: um país supostamente mais rico, mas com mais pobres. 

Em outubro de 2024, o INE divulgou novas estimativas segundo as quais a pobreza absoluta terá passado de 35,5 % em 2015 para 24,75 % em 2023. O INE definiu a “linha de pobreza absoluta” como um rendimento per capita de 262,8 escudos diários nas zonas urbanas e de 226,3 escudos diários nas zonas rurais. Esses valores são, contudo, praticamente idênticos aos de 2015, pelo que já não correspondiam à realidade da pobreza no país.

Para a estimativa da pobreza extrema, o INE adotou, pela primeira vez, a linha internacional de pobreza de 2,15 USD (PPC de 2017), o que levou a que a taxa de pobreza extrema caísse de 4,56 % em 2015 para 2,28 % em 2023. Contudo, esse limiar estava incorreto, pois, desde 2008 Cabo Verde era já um país de rendimento médiobaixo, pelo que o limiar aplicável deveria ter sido 3,65 USD, e não 2,15 USD, que se destinava a países de baixo rendimento.

Com a reclassificação atual para país de rendimento médioalto e a correspondente atualização da linha internacional de pobreza para 8,3 USD, surge o seguinte quadro em termos de pobreza extrema, em coerência com a abordagem do INE.

Considerando que, em termos de PPC, 1 USD em 2021 equivalia a aproximadamente 47,23 escudos, segundo o FMI (via DataMapper), o limiar de pobreza extrema corresponderia a 392 escudos/dia (8,3 USD × 47,23). Isto significa que todos os que o INE considerara em situação de pobreza absoluta em 2023 passaram a ser classificados como em situação de pobreza extrema: de cerca de 11 280 pessoas (2,28 % de 510 000 residentes) para aproximadamente 126 225 pessoas (24,75 % de 510 000 residentes). Além disso, todos aqueles com rendimentos mensais inferiores a 11 760 escudos (392 escudos × 30 dias) – pensões, reformas, rendimentos sociais – seriam considerados na pobreza extrema. Assim, muito facilmente poderemos chegar a 30 % da população total a viver em extrema pobreza.

Deste modo, com a reclassificação de Cabo Verde para país de rendimento médioalto e a correspondente atualização da linha internacional de pobreza para 8,3 USD/pessoa/dia, a ilusão da erradicação da pobreza extrema, tão propalada, desfaz-se face à fria realidade das novas linhas de corte, expondo a fragilidade de um discurso que se baseia em meros números absolutos e atamancados sem considerar a complexidade das metodologias subjacentes.

Em suma, a recente reavaliação do Banco Mundial não pode ser celebrada sem reservas. Trata-se de uma medida precipitada, assente em números provisórios – e muito provavelmente inflacionados – e numa emigração jovem que distorce os cálculos, cujas implicações financeiras e sociais se mostram potencialmente negativas. 

Praia, 04 de julho de 2025

*Doutorado em Economia

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