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Sociedade

Brincando e aprendendo

Muito mais do que diversão, o acto de brincar é reconhecido como fundamental para o desenvolvimento integral das crianças. É através das brincadeiras que elas exploram o mundo, constroem vínculos, desenvolvem habilidades cognitivas, emocionais, sociais e físicas, e se preparam para os desafios da vida adulta. Para os especialistas, garantir tempo e espaço para o brincar é tao importante quanto alimentar, cuidar e educar. Afinal, brincar é coisa séria. 

Quando se pergunta a uma criança quais são os seus direitos, uma das respostas mais frequentes é: o direito de brincar. Talvez porque, na sua pequena mente em formação, têm uma sabedoria nata sobre a importância que o brincar tem para o seu desenvolvimento e crescimento e para a construção de adultos saudáveis e funcionais. Prova disso é o facto de muitas das boas recordações que se tem da infância estarem associadas a momentos de brincadeira, seja em casa com a família, na comunidade ou na escola. 

Direito versus ferramenta

O direito a brincar está consagrado no artigo 31º da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (CDC), um tratado internacional adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1989. É o documento de direitos humanos mais amplamente ratificado na história, tendo sido adotado por quase todos os países do mundo. 

O documento reconhece a importância do brincar para o desenvolvimento e bem-estar das crianças e o direito delas “ao descanso e ao lazer, ao divertimento e às atividades recreativas próprias da idade, bem como à livre participação na vida cultural e artística”. 

Além disso, refere que os Estados devem “respeitar e promover o direito da criança de participar plenamente da vida cultural e artística e devem estimular a oferta de oportunidades adequadas de atividades culturais, artísticas, recreativas e de lazer”. O objetivo é fazer com que as crianças participem em jogos e brincadeiras apropriadas à sua idade.  

Neste âmbito, reconhecendo o impacto que o planeamento urbano pode ter para assegurar espaços seguros e adequados para as crianças brincarem, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) criou, em 1996, a iniciativa “Cidades Amigas da Criança”. O objetivo é incentivar a criação de cidades que priorizem o bem-estar e os direitos das crianças, incluindo o direito de brincar. Além disso, realiza campanhas para consciencializar sobre a importância do brincar e para pressionar por políticas públicas que garantam esse direito.

Cabo Verde aderiu à CDC em 1991, assumindo assim o compromisso de implementar esses princípios, inclusive o direito a brincar.  No Relatório sobre a implementação da CDC, elaborado em 2017, na parte sobre Tempos livres, atividades recreativas, culturais e artísticas, refere-se que instituições públicas e da sociedade civil, sobretudo Câmaras Municipais e ONG´s, promovem atividades destinadas a crianças, especialmente em datas comemorativas. 

O novo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECCA), aprovado em Janeiro de 2025, consagra o direito ao lazer, que “inclui os direitos aos tempos livres, ao descanso, à brincadeira e à prática de atividades recreativas, culturais e artísticas apropriadas à sua idade e ao seu desenvolvimento físico e intelectual”. 

Zaida Morais de Freitas

Para a presidente do Instituto da Criança e do Adolescente (ICCA), Zaida Morais de Freitas, “o brincar está na base da nossa formação e desenvolvimento como seres humanos. É uma atividade essencial para o desenvolvimento integral da criança e para o crescimento saudável, assim como para a construção da autonomia e identidade da criança. Daí a importância de espaços de divertimento seguros onde a criança possa brincar, estar ao ar livre e socializar com os seus pares”. 

A dirigente alerta ainda para uma maior sensibilização das famílias “para a importância do brincar e da participação da família em momentos de brincadeira, garantindo tempo de qualidade tão importante para o desenvolvimento das crianças e para o fortalecimento de vínculos familiares seguros”.  

Por outro lado, defende que “os professores e educadores devem ser cada vez mais preparados para valorizar a dimensão pedagógica e terapêutica do brincar pois, ao brincar, a criança experimenta a incerteza da realidade através do faz de conta, da fantasia e do imaginário”. 

Informou ainda que o ICCA tem vindo a trabalhar com as comunidades a nível nacional, através da campanha “Nos féria protegida”. “O objetivo é incentivar as comunidades a promoverem espaços recreativos saudáveis durante as férias escolares, por entendermos que durante as férias as crianças ficam mais vulneráveis e expostas aos perigos”, referiu. 

“O brincar é o trabalho da criança”

Kika Freire

A ideia é defendida pela psicóloga Kika Freire. Para a especialista, diferente do adulto, que trabalha para produzir um produto ou serviço, “ao brincar, a criança trabalha para viver o processo, não o resultado”. Ela defende que “o brincar é o trabalho da criança e que, para aquela criança que não o é, deveria ser”.  

A psicóloga explica que “a criança não precisa que ninguém avalie “se o seu carrinho está bem posicionado, se a boneca veste casaco em dia de calor ou se ela pintou a árvore de cinzento e amarelo e não de verde”. 

Para a especialista, “o brincar para a criança é todo o processo de imaginar, fazer, desfazer, refazer e divertir-se em cada uma destas etapas do seu trabalho. E, sem precisar estar estabelecido nos objetivos do trabalho, ela desenvolve habilidades físicas, motricionais, intelectuais, emocionais e sociais através da brincadeira”. 

Kika Freire ressalta ainda que, através da brincadeira, as crianças treinam para as situações do quotidiano e do mundo e levam muito a sério este treino. “Ela observa, imita, reproduz práticas e narrativas construídas na sua realidade e na leitura que faz desta realidade. Por isso é tão importante se deixar a criança ser criança e não se acelerar nem pular etapas do seu desenvolvimento”, reitera. 

“As crianças têm estado menos tempo ao ar livre que os reclusos nas prisões”

Instada a deixar dicas aos pais em relação à importância das crianças brincarem, Kika Freire refere: “A principal recomendação é para que retornem às raízes, ao contacto com a natureza”. 

A especialista alerta para o facto de, atualmente, as crianças estarem a sofrer do que tem sido chamado de “deficit de natureza”, pelo que defende que elas “precisam pisar na terra, na relva, na areia da praia, correr, subir em árvores, cozinhar na terra, arranhar o corpo e ter mais experiências da vida. A vida dentro de casa e no concreto não nos permite ter as mesmas experiências que essas brincadeiras na natureza”. 

Kika Freire frisa a importância de se assegurar que as crianças tenham esses momentos de brincadeira ao ar livre. “Há estudos recentes que têm apontado que as crianças têm estado menos tempo ao ar livre que os reclusos nas prisões. E se isso não nos assusta, o problema está em nós. Vamos para fora. Vamos correr, sujar, conviver com a natureza da qual fazermos parte, e viver com mais interações naturais que artificiais”, conclui Kika Freire. 

“As memórias mais doces da infância” 

Em Cabo Verde, noutros tempos, as crianças brincavam sobretudo na rua. Edna Fortes, que hoje reside fora de Cabo Verde, recorda-se, com nostalgia, das tardes passadas na rua com os amigos na cidade do Mindelo, a inventar mil e uma brincadeiras. 

“São das memórias mais doces que tenho da minha infância. Quase não tínhamos brinquedos, mas nos divertíamos tanto. Fiz amigos para a vida toda”, recorda. Ricardo Andrade recorda dos jogos de “carambola” e de “pratin”. “Fazíamos campeonatos, com taças improvisadas. São doces recordações”, descreve. 

Hoje, os desafios são outros. Na maior parte do país, já não se brinca na rua como antigamente, sobretudo por questões de segurança. Muitos defendem mais investimentos na criação de espaços seguros e adequados para o lazer infantil, como parques e áreas de recreação, e tem-se notado uma aposta neste sentido. No entanto, a quantidade de parques parece ainda ser insuficiente. 

Além disso, muitos queixam-se da falta de vigilância e da manutenção desses espaços. “Muitas vezes os brinquedos são usados, de forma inadequada, por crianças mais velhas e adolescentes, que acabam por danificá-los. E depois há a própria degradação dos materiais. O parque da Cruz de Papa, por exemplo, parece ter sido deixado ao abandono”, refere uma mãe num parque no bairro do Palmarejo, na cidade da Praia. 

Américo Fortes

“Xclumbumba é o resultado do brincar”

Américo Fortes, mais conhecido por Xclumbumba, é uma figura conhecida das crianças, sobretudo na cidade da Praia, pelo seu trabalho como palhaço, mas também como contador de histórias e animador. Desde a adolescência, sempre quis trabalhar com crianças. 

“Eu tenho essa coisa por dentro de fazer as crianças entrarem em ação”, refere. Esse dom terá tido origem na sua própria infância em São Vicente, quando ia de Monte Sossego, onde morava com o pai, para a casa de avó em Madeiralzinho. “Ali, eu era criança, tinha a liberdade de estar na rua, de brincar, correr, me sujar. Então, o Xclumbumba são as possibilidades e a consequência desse brincar, pois eu brincava com crianças, conversava com toda a gente e sentia essa liberdade”, recorda.  

Hoje, com uma experiência de mais de vinte anos a trabalhar com crianças, considera que, além de uma forma de expressão e de desenvolvimento de habilidades, “a brincadeira é a melhor forma que um pai ou educador pode usar para transmitir um ensinamento ou orientação”. 

Quando questionado sobre a forma como a sociedade cabo-verdiana reconhece ou valoriza a importância da brincadeira, entende que, nas zonas rurais “a carga de responsabilidade que muitas crianças têm é demasiado e o direito à brincadeira é quase nulo ou condicionado, pois a criança pode ser interrompida a qualquer hora”. 

Nas cidades, considera que o desafio maior são as novas tecnologias. “Eu já vi crianças em festas de aniversário viciadas em telemóvel. Se se retirar o telemóvel daquela criança, ela tem um ataque de nervos”, conta. Refere ainda notar que essas crianças normalmente “gesticulam com dificuldade, com pouca liberdade nos dedos das mãos, diferente das crianças que brincam”. Xclumbumba chama ainda a atenção para o risco de se preencher todo o tempo livre da criança com atividades. “Ela não brinca, não sorri e vai fechando a sua personalidade”, considera. 

“Sou um educador fora da caixinha”

Américo Fortes nasceu em Angola, mas ainda criança foi viver em São Vicente. Ali, ao frequentar o Centro Juvenil Nho Djunga e a Escola Industrial do Mindelo, mostrou talento para as artes, tendo depois realizado diversas formações em teatro, dança, oratória, animação radiofónica, entre outras. Além disso, fez formações em áreas como mecânica, carpintaria, marcenaria, entre outras, e um curso de palhaço na Alliance Française. Refere ainda uma formação de circo, realizada no Brasil, e a implementação de diversos projetos em São Vicente. 

Com 16 anos, já tinha habilidade para lidar com crianças e contar histórias, adquirida quando contava histórias para a irmã, de sete anos. Aliás, foi assim que o nome artístico surgiu. 

“Um dia inventei a história de uma criança que ia para a casa da avó, mas que no caminho encontrava amigos imaginários que falavam, como uma árvore, um galo e até uma sanita. A minha irmã disse que a história não era verídica e perguntou o nome do menino. Atrapalhado, eu disse: Xclumbumba”, recorda. 

O nome consolidou-se em 2002, quando iniciou um projeto de contar histórias nas escolas, contando o “Xclumbumba, onde k bo ti ta bai”, que foi depois transformada numa peça de teatro. “Eu me visto de palhaço pela primeira vez para convidar as pessoas para assistirem a um espetáculo”, recorda. 

Desde 2005, reside na cidade da Praia, onde tem desenvolvido diversos projetos com crianças. Assume-se, sobretudo, como um contador de histórias, formador e animador de festas infantis. 

“Comecei em 2006, já vou a caminho de 700 festas”, descreve. Enquanto palhaço, diz ser: “um palhaço mais contido, de forma consciente, para poder ter uma capacidade de comunicação, contar histórias e assim conseguir trabalhar a parte pedagógica”. Define-se, por isso, como “um educador fora da caixinha para crianças e adolescentes, contando histórias com moral, usando técnicas de teatro e de palhaço”. 

Os desafios, diz, são muitos, mas continua com muitos projectos. “Às vezes é difícil, mas há sempre uma criança ou um adulto que se recorda de mim quando era criança e que me dá um abraço ou que diz ‘olha o palhaço do meu jardim, olha o palhaço da minha escola’. Para mim, isso é extremamente forte. Então, eu quero trabalhar para que as crianças continuem a brincar com confiança e a confiar no que podem fazer”, remata. 

 

Ilda Fortes

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