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Cabo Verde aos 50: entre conquistas e urgências

Por: Paulo Mendes*

Cinco décadas depois da independência, o país tem motivos para se orgulhar — mas não para se acomodar. É tempo de visão, coesão e coragem.

Cabo Verde celebra meio século de independência com orgulho. Orgulho justo, conquistado com esforço coletivo. Para um país que, em 1975, tinha como prioridade impedir que os seus cidadãos morressem à fome, os avanços são notáveis: melhorias na educação, na saúde, na luta contra a pobreza e na consolidação da democracia. O nosso PIB multiplicou-se por 22; o PIB per capita, por 13. Estes números não são apenas estatísticas — são prova viva de um percurso de superação.

Mas celebrar não é o mesmo que acomodar. O aniversário da independência deve ser um momento de balanço crítico e projeção estratégica. Precisamos de encarar, com realismo e ambição, os principais desafios do país. Proponho aqui uma leitura agrupada em três blocos: desafios estruturais, desafios simbólicos e culturais e desafios de coesão e inclusão.

1. Desafios estruturais: transporte, economia e planeamento

O transporte inter-ilhas continua a ser um entrave à coesão territorial. Num país arquipelágico como o nosso, a mobilidade não é um luxo — é infraestrutura básica. A nossa incapacidade de construir uma política pública coerente e sustentável nesta área tem sido um dos maiores fracassos nacionais. Enquanto essa fragilidade persistir, qualquer discurso sobre descentralização será, no mínimo, contraditório.

É urgente um consenso nacional sobre o modelo de transporte que queremos: uma política com visão de médio e longo prazo, transparente quanto aos custos, e que assuma com verdade que um sistema funcional exige o envolvimento do Estado. Outros arquipélagos, como os Açores, oferecem modelos possíveis — não precisamos de reinventar a roda, mas adaptá-la com inteligência à nossa realidade.

Por outro lado, apesar do crescimento no turismo, estamos perigosamente dependentes desse setor. A recente observação do economista Carlos Lopes sobre a nossa “basofaria” em torno de hubs e promessas económicas sem impacto real deve servir de alerta. Não podemos dormir à sombra dos elogios internacionais. Há pelo menos 15 países africanos com indicadores superiores aos nosso, adverte Carlos Lopes.  Precisamos de diversificar a economia, apostar em setores produtivos, investir em conhecimento e inovação.

Tudo isto exige pensamento estratégico — uma das nossas maiores lacunas. Herdámos a tradição portuguesa de governar ao sabor das urgências e ampliámos essa deficiência. É fundamental criar uma unidade pública que pense o futuro de Cabo Verde, antecipe tendências globais e planeie com base em evidência. Para um país com recursos limitados, os custos da improvisação são elevados. Pior ainda: deixamos que os apoios internacionais sejam ditados por agendas externas, e não pelas nossas prioridades.

2. Desafios simbólicos e culturais: identidade, história, cultura e despolitização

A excessiva partidarização do debate público tem bloqueado o nosso desenvolvimento. A forma como PAICV e MpD se digladiam em torno de datas simbólicas, conquistas coletivas e figuras históricas revela uma cultura política pouco saudável. A independência e a democracia são património do povo — não propriedade exclusiva de nenhum partido.

Precisamos de despolitizar a sociedade e promover um debate mais maduro e construtivo. Num mundo instável e num país tão exposto ao exterior, é vital encontrar consensos estratégicos. A lógica da trincheira não serve Cabo Verde.

Também precisamos de nos reconciliar com a nossa história. Existe uma tendência para desvalorizar figuras como Amílcar Cabral — o que é não apenas injusto, mas perigoso. Reconhecer os erros e acertos do passado, sem complexos, é essencial. Um país que não honra os seus heróis está condenado à fragmentação.

A questão da identidade nacional exige debate. Cabo Verde é inequivocamente africano — mas também tem laços profundos com a Europa. Não há contradição nisso. A nossa identidade deve ser uma plataforma de aproximação ao continente africano, à Europa e à Macaronésia. Mas essa ambivalência exige clareza e estratégia.

Neste esforço, a cultura tem um papel central. Somos um país pequeno, mas com uma cultura vibrante e reconhecida no mundo. A cultura cabo-verdiana não é apenas expressão — é também motor económico. Com políticas públicas adequadas, pode gerar emprego, receitas e prestígio internacional.

3. Desafios de coesão e inclusão: pobreza, diáspora e cidadania

Apesar dos avanços, os números da pobreza continuam preocupantes. Em 2023, cerca de 25% da população vivia abaixo da linha da pobreza. Este dado deve mobilizar-nos. Erradicar a pobreza absoluta tem de ser uma prioridade nacional, com metas ambiciosas, políticas robustas e avaliação séria dos resultados.

Educação continua a ser a chave. Democratizámos o acesso ao ensino superior, mas agora é urgente melhorar a qualidade: pensamento crítico, domínio de línguas, competências digitais — são as ferramentas de que os jovens precisam para competir num mundo global.

A diáspora, com cerca de um milhão de cabo-verdianos espalhados pelo mundo, é um dos nossos maiores ativos. E continua dramaticamente subvalorizada. Falta uma política clara e transformadora para integrar a diáspora no desenvolvimento nacional. Os emigrantes não são apenas fonte de remessas — são parceiros estratégicos.

Por fim, o reforço da cidadania exige instituições públicas competentes, éticas e independentes dos ciclos políticos. E exige também uma sociedade civil ativa, crítica e participativa. Não podemos deixar o destino coletivo nas mãos exclusivas das lógicas partidárias.

Cabo Verde precisa de visão e coragem

Celebrar os 50 anos da independência é também fazer uma escolha: acomodar-nos na narrativa do “país exemplar” ou assumir, com coragem, os desafios que persistem. Prefiro a segunda opção. É tempo de menos propaganda e mais estratégia. Menos polarização e mais sentido de Estado. Menos dependência e mais ambição.

Cada um de nós tem de assumir a sua parte na construção de um país mais justo, mais coeso e mais sustentável. Cada um de nós tem de cultivar o seu Cabral interior — essa voz que sonha, que luta e que constrói.

*Sociólogo

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