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Cabo Verde, outra vez verde de esperança

Por: Cremilda Medina*

Ao ler uma entrevista concedida à Agência Fapesp em 1º de julho, encontrei na pesquisadora Eurídice Monteiro, de Cabo Verde, ecos de uma viagem há 40 anos aos países de língua portuguesa na África. Em sua conferência e nas respostas dadas a José Tadeu Arantes, a socióloga e cientista política abordou as atuais perspectivas do continente, que podem ser resumidas no título da íntegra do diálogo: “A África precisa ser reconhecida como produtora de saberes e interpretações sobre o mundo”. E a gestora e educadora afirma, logo à saída, que procura “pensar o acesso livre ao conhecimento não apenas como um problema de distribuição, mas como um imperativo de justiça epistêmica e soberania cognitiva”. E Eurídice Monteiro culmina a frase anterior com um diagnóstico contundente: “É necessário romper com a lógica que transforma a África em mero objeto de investigação científica. A África precisa ser reconhecida como sujeito epistêmico – produtora legítima de saberes e interpretações sobre o mundo”.

Minha consciência se aplaca porque quando visitei Cabo Verde em 1986, pouco mais de dez anos de sua independência, não foi como objeto de pesquisa, mas de sentidos abertos à observação-experiência não apenas perante a jovem nacionalidade na geopolítica do momento, mas sobretudo para ensaiar descobrir sua identidade cultural secular.

Está certo que pela janela literária dentro do projeto que me impus nos anos 1980 – ir ao encontro dos escritores de língua portuguesa, o que se registrou em três livros: Viagem à literatura portuguesa contemporânea (1983); A posse da terra, escritor brasileiro hoje (1985); e Sonha Mamana África (1987).

A tese de livre-docência que defendi em 1989 na Universidade de São Paulo já no título dá a chave do que representam as vozes poéticas de um país: Povo e personagem. Ao recolher depoimentos e fragmentos de obras literárias dos escritores dos três continentes, ao me lançar a espaços de nacionalidades e testemunhos em suas ruas, na experiência de os reportar, encontrei profundas sintonias epistemológicas e de visões de mundo entre personagens e povo.

O título em Sonha Mamana África, que contempla Cabo Verde, à página 415, “A mão livre do homem planta árvores na calvície”, para além da metáfora das ilhas cujas árvores alimentaram a velha navegação colonial no Atlântico, move também o gesto da ação para um futuro com demandas que ainda persistem no arquipélago e para as quais Eurídice Monteiro agora chama a atenção numa profunda entrevista. Dizia eu há quatro décadas, no segundo parágrafo dedicado a introduzir os poetas, ensaístas e ficcionistas da terra:

Hoje, os caboverdianos, auxiliados por homens de boa vontade de organizações ecológicas internacionais, tentam implantar, nessa calvície, árvores para o futuro. Porque assim como há um passado de pobreza e exploração, há um futuro de esperança. E no sonho do futuro, ilhas verdes.

Esse o tom maior dos países africanos de língua portuguesa que conheci, todos voltados para a imediata realização de seus sonhos – os do meio ambiente devastado e sobretudo os da condição humana. Não foi por acaso que escolhi para o livro que engloba Moçambique, Angola, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau e Cabo Verde (ordem da viagem na década de 1980) – Sonha Mamana África. Em uma conversa com escritor Calane da Silva, em Maputo, a 20 de setembro de 1986, lhe perguntei assim como ninguém quer nada: você acha que a África tem o direito de sonhar? Eu sabia que sim pelo que ouvia na rua e lia na poética… Mas o jornalista e poeta moçambicano pegou um papelucho e me escreveu o que seria a epígrafe de meu livro:

ainda achas que temos sonhos

ainda achas que estamos vivos

não achas que nós, vivos,

estamos perdidos

pessoano não sou

venho do bairro limítrofe

onde a pólvora do mundo

conosco acabou

Mas tanto nessa época do século passado como hoje, Mamana África (foi só em Moçambique que a palavra mãe cresceu para mamana) alimenta a inovação na língua, na epistemologia, nas visões de mundo. Voltando a Cabo Verde, viajo à ilha de São Vicente em 1986 para conhecer o decano das letras – Baltasar Lopes na prosa e, na poesia, conhecido por Oswaldo Alcântara, ambas as contribuições consagradas em Portugal tanto na pesquisa linguística quanto na poética. E como hoje a cientista social cabo-verdiana afirmou na Fapesp, não fugia à regra dos africanos, todos ligados ao Brasil pela literatura, pela História, pelos sonhos do cotidiano. E Oswaldo Alcântara, na sabedoria da idade (morreria em 1989), me disse que “a vida, apesar de tudo, não mudou muito, e o mundo só mantém reservas de oxigênio para os doidos”.

Tantos doidos com reservas de oxigênio encontrei, tantos poemas aqui gostaria de reviver a partir da motivação da parceira de epistemologias cabo-verdianas, neste ano de graças e desgraças de 2025, que falta fôlego para a letra comum, mas não para mais um poema de Oswaldo Osório das tantas vozes de Cabo Verde que me cederam fragmentos de sua obra para meu livro. Uma homenagem póstuma a quem nos deixou em 2024:

Apenas um mundo

agora quando o medo

é ainda pão insuficiente

agora quando a derrade

ra luta é um pedaço de terra

onde a flor colhida se chama libe

dade

agora não sacies tua fome de séculos

com arranha-céus de loucura

apenas um mundo

onde ao ritmo de trabalho novo

o pão retempere o suor da jornada

apenas o trevo da leitura

apenas uma cor

la mais de sonho conquistado

apenas raízes de liberdades inviol

veis

e dança coração

mas alerta sempre ao ritmo dos teus

passos

(“Caboverdeanamente – Poemas

para depois da Luta”, Publicações

Nova Aurora, Lisboa, 1975.)

*Professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA),  da USP, artigo publicado em Jornal da USP. 

* IEA/USP

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