Falta de intérpretes, ausência de políticas públicas eficazes, desconhecimento da Língua Gestual Cabo-verdiana (LGCV) e discriminação social são apenas algumas das dificuldades enfrentadas no dia- a- dia pelas pessoas surdas em Cabo Verde. Famílias deslocam-se entre ilhas em busca de escolas e apoio, enquanto jovens surdos lutam por inclusão, independência e o direito de sonhar com uma profissão.
O direito à comunicação é fundamental para qualquer cidadão. No entanto, em Cabo Verde, esse direito continua a ser negado a centenas de pessoas surdas que vivem à margem do ensino, saúde e serviços públicos, muitas vezes, por falta de acesso à Língua Gestual Cabo-verdiana (LGCV).
A inclusão para quem pa dece de surdez está longe de ser uma realidade, como aponta Ângela Lopes, intérprete, professora na Escola Eugénio Tavares e presidente da Associação de Familiares e Amigos de Surdos de Cabo Verde (AFAS-CV). “O nível de inclusão de surdos é extremamente deficiente. A maioria não tem a escolaridade mínima obrigatória e nem conhece a língua gestual”.
Ângela Lopes defende a oficialização e a implementação da LGCV nas escolas e em serviços públicos e afirma que “formar intérpretes em todos os municípios e capacitar professores para serem bilingues é essencial”, e não um luxo ou uma extravagância. “Precisamos de políticas públicas assertivas que promovam a igual dade de oportunidades”, sublinha.
E no caso da educação, sendo um dos sectores onde os desafios são mais evidentes, Audino Barbosa, estudante universitário da Uni–Piaget, surdo, conta que no ensino primário não havia qualquer apoio, e foi muito difícil para ele singrar. “Não tinha língua gestual, não entendia nada. Só no liceu, quando conheci outros surdos onde havia intérpretes, é que comecei a aprender.” No seu caso foram anos de desconforto, frustração e desespero. “Eu queria aprender e evoluir e não conseguia”.
Suelly Débora, também surda, estudante na Uni-CV, relata uma experiência universitária marcada por in compreensão e ansiedade, onde teve professores que a chamavam de preguiçosa por tirar notas baixas e, insensíveis, não percebiam as dificuldades que ela tinha com leituras e memorização, sobretudo por não ter acompanhamento de nenhum intérprete de língua gestual.
Esta nossa entrevistada critica por isso a falta de formação dos docentes para li dar com alunos surdos e destaca que muitos ainda vêem estas pessoas como “inocentes” ou “incapazes”. “Quero ser independente, ter uma profissão, mas, muitas vezes sinto que as pessoas não acreditam na nossa capacidade”, desabafou Suelly.
Drama das famílias
Para algumas famílias, a convivência com membros seus com deficiência auditiva nem sempre é fácil, por não saberem a língua gestual, o que se torna numa limitação para uma conversa.
Ronise Pina, mãe de dois filhos surdos, lembra o quanto foi difícil no ínicio, para eles, por causa do medo, pânico e preconceito, poderem ter uma vida normal. A nossa entrevistada reconhece algum apoio na saúde, mas critica a ausência de formação em LGCV nas escolas. “A principal barreira é a comunicação”, garante.
O drama é maior para quem vive nas outras ilhas, que não Santiago ou São Vicente, onde, bem ou mal, a situação é diferente. Gisele, mãe de uma criança surda da ilha do Maio, teve de abandonar tudo e mudar-se para a cidade da Praia, onde enfrenta diariamente dificuldades enormes.
“A convivência não é fácil, principalmente quando mo ramos numa ilha que não tem como o surdo aprender a linguagem gestual e torna-se difícil a comunicação e a aprendizagem.
Quanto ao apoio para um surdo, infelizmente, não se tem nenhum, principalmente na educação”.
Como diz, para os surdos que moram nas ilhas consideradas periféricas é tudo mais complicado. As barreiras são muitas, tanto para surdo como para a família.
“Eu por exemplo sou uma mãe que vivia na ilha do Maio, e por não haver escolas especializadas tive que abandonar tudo e vir para a cidade da Praia, à procura de melhores condições para estudos da minha filha. Chegando aqui fui atrás de alguns apoios e nada, e sem apoio tudo se torna mais difícil e principalmente a permanência aqui, na Praia, para continuar os estudos”.
Carla dos Reis, outra mãe vinda também do Maio, par tilha o mesmo sentimento. “Recebemos um apoio financeiro de 5.880 escudos, que mal dá para transportes. As despesas ficam todas a cargo da família. Tive de deixar a minha casa e minha família no Maio para morar na cidade da Praia por causa do meu filho que é surdo, porque, na minha ilha, não há profissional adaptado para pessoas surdas e mesmo na cidade da Praia existem também muitas barreiras, sendo que a principal é a questão financeira para as despesas”.
Saúde, serviços e preconceitos

Vanda Adrião e sua filha Aisha
Os serviços públicos, especialmente saúde e educação, apresentam barreiras que precisam ser corrigidas. Audino Barbosa conta que, às vezes, tem problemas para se comunicar nos serviços públicos.
Aísha, 11 anos, uma criança com multideficiência (incluindo surdez), segundo a mãe Vanda Adrião, apenas foi na escola de surdos Eugénio Tavares, na Achada Santo António, onde encontrou apoio para estudar.

Helena Augusta – Presidente de Associação dos Surdos e professora da língua gestual
Helena Augusta, presidente de Associação dos Surdos, professora da língua gestual, também é surda, alerta para situações de risco em que as pessoas como ela se encontram.
“A ausência de intérpretes de LGCV em hospitais e outros serviços públicos dificulta imenso a comunicação sobre necessidades de saúde, informações importantes e trâmites burocráticos. Isso pode levar a diagnósticos errados, informações incompletas e dificuldades no acesso a serviços essenciais”.
Além da falta de acessibilidade, há preconceitos. Suelly lamenta que, às vezes, os surdos são ridiculizados, troçados e por isso desrespeitados. Reforça que os surdos têm sonhos e querem ser reconhecidos como capazes. “Quero ser psicóloga e dentista, mas acham que não posso por ser surda”, reclama.
Um apelo à mudança
As vozes ouvidas por esta reportagem apontam todas na mesma direcção: é urgente criar um Cabo Verde mais acessível, justo e inclusivo.
Medidas como o reconhecimento oficial da Língua Gestual Cabo-verdiana, a formação de intérpretes, o acesso à educação bilingue e a sensibilização da sociedade são passos fundamentais para garantir a dignidade e os direitos das pessoas surdas.
Adelise Furtado
Texto publicado na edição 930 do Jornal A Nação, de 26 de junho de 2025
