Por: Flora Lopes*
O tráfico de pessoas é um crime invisível e transnacional que se alimenta das desigualdades sociais e da vulnerabilidade humana. Em Cabo Verde, compreender este fenómeno exige mais do que uma resposta repressiva: requer uma abordagem multidisciplinar que envolva a comunidade, profissionais de diversas áreas e uma consciência colectiva sobre os factores que o perpetuam.
Sociologia criminal: a sociedade que pune o que produz
Num contexto de desigualdade estrutural, verifica-se que o fenómeno da criminalidade não pode ser compreendido exclusivamente a partir das escolhas individuais dos intervenientes. A falta de acesso equitativo a serviços essenciais como a educação, a saúde, a habitação e o trabalho digno contribui para a marginalização de determinados grupos sociais. A resposta penal incide, assim, nos resultados de disfunções institucionais acumuladas ao longo do tempo.
A sociologia criminal explica esse paradoxo. Pensadores como Foucault, Wacquant e Baratta mostram como o Estado usa a punição para controlar corpos marginalizados, reforçando hierarquias raciais e sociais. O tráfico de pessoas, por exemplo, revela:
• Vulnerabilidade social como porta de entrada;
• Ausência institucional que facilita a exploração;
• Normalização da ilegalidade sob o disfarce de trabalho informal.
Foucault aponta que o controle social sustenta práticas de dominação mesmo sob uma fachada de legalidade. Nesse contexto, punir é menos sobre justiça — e mais sobre manter a ordem de um sistema que produz seus próprios condenados.
Antropologia: práticas culturais e invisibilidade
A Antropologia desvenda o papel das tradições locais na perpetuação do tráfico:
• Costumes como escudo: casamentos forçados e trabalho infantil são, por vezes, naturalizados;
• Silenciamento social: normas culturais dificultam denúncias e protegem agressores;
• Redes simbólicas: família e costumes podem tanto proteger quanto aprisionar vítimas.
Claude Lévi-Strauss ensina que vínculos sociais baseados na troca podem abrir espaço para exploração legitimada.
Investigação humanizada e interdisciplinar
O combate exige:
• Mapeamento sociocultural de zonas críticas;
• Entrevistas com vítimas e líderes comunitários;
• Estudo das redes criminosas e empresas envolvidas;
• Integração entre sociólogos, opc’s(polícia nacional e judiciária), assistentes sociais e instituições públicas.
Cabo Verde: vulnerabilidade estratégica
A localização geográfica e o fluxo migratório tornam o país susceptível ao tráfico disfarçado de turismo ou emprego. A ausência de estatísticas mostra dificuldade de identificação, e não inexistência dos casos.
Do satélite à denúncia anónima, a tecnolgia tornou-se parceira estratégica na resposta aos desafios criminais do século XXI
Ferramentas avançadas aumentam a eficácia:
• Geolocalização e satélites para rastrear rotas e zonas remotas;
• Big data para identificar padrões de aliciamento;
• Blockchain para rastrear cadeias produtivas com vínculos exploratórios;
• Redes sociais como campo investigativo;
• Plataformas de denúncia anónima para fortalecer vítimas;
• Capacitação local para uso ético da tecnologia;
• Cooperação internacional (INTERPOL, Europol) para intercâmbio de in-formação e formação.
Importa salientar que o rastreio digital, enquanto prática investigativa, encontra respaldo legal nas legislações de Cabo Verde e Portugal.
Conclusão: empatia e justiça social
O tráfico revela lacunas estruturais na organização social. O seu enfrentamento exige abordagens interdisciplinares, aliando sociologia, antropologia, recursos tecnológicos e, sobretudo, empatia. A escuta activa, políticas inclusivas e o fortale-cimento da justiça social são instrumentos centrais para converter cada denúncia numa resposta colectiva e transformadora.
*Mestre em Direito e Prática Jurídica, Especialidade Jurídico-Forenses, pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
