Por: Alexandre Silva*
A reforma da administração pública é a área de governação em Cabo Verde que mais tem sofrido com o ping-pong das guerrilhas políticas que a submetem a constantes experiências laboratoriais numa média de cada alternância partidária no poder.
Perante a dignificação de secretaria de estado a ministério, a modernização da administração pública evidencia-se pela intensiva produção legislativa, desde a “codificação” da lei-quadro da função pública à revogação de todos os subsistemas de gestão dos RH, enfatizando o aumento generalizado dos salários, programas de estágios profissionais e do combate à precariedade laboral entre outra série de quick-wins como o alargamento da licença da maternidade e paternidade, eliminação de idade mínima de admissão na função pública e alargamento da idade de reforma aos 70.
Contudo, os aspetos técnicos desta reforma destacam-se, antes de tudo, pela ausência de conhecimento holístico da estrutura, distribuição e evolução do pessoal nos diversos níveis e setores da administração pública e, por isso desprovida de uma análise de impacto financeiro que garanta o controlo dos efetivos e da sustentabilidade da massa salarial.
É no anúncio de um novo paradigma da função, que ora passa a ser gerida com base no conceito de “função e não de cargo” que, a nosso ver, se excedeu na simplificação conceptual da realidade comprometedora da racionalidade da gestão de pessoas. Sempre existiu uma intrínseca conflitualidade entre o regime geral (incumbidos de funções indiferenciadas para garantir a burocracia em todos os ministérios e, por isso, submetidos a uma titulação inócua que nada informa sobre o que realmente fazem) e a proliferação dos regimes especiais melhor pagos (caraterizados pela “especificidade de funções” em determinado departamento e, por isso utilizando titulações que informam o que estes funcionários fazem e/ou em que condições o fazem como os médicos, docentes, financeiros, diplomatas, registos e notariado, inspetores, etc.) ao ponto de contabilizar-se hoje mais de 21 “funções” na administração direta. Somente no Ministério das Finanças coabitam quatro regimes privativos, sendo o pessoal da Direção de Planeamento e, inclusive da DGPOG (âmbito do regime geral), os últimos corpos a dignificarem-se desta “fuga ao cargo comum”.
Neste propósito a reforma culmina com a criação da Tabela Única de Remunerações (TUR) constituído pela hierarquia dos Grupos de Enquadramento Funcional (GEF) que tem vindo a fazer a grande diferença porque refletem um aumento exponencial dos salários de ingresso (mais de 50% dos docentes com licenciatura de 55000 para 91000 ecv e para os médicos gerais de 87250 para 136000 ecv). Contra factos não há argumentos, trata-se de reforma com maior impacto nos salários de ingresso registada.
Todavia, estes aumentos escondem a real evolução salarial dos funcionários do meio ao fim das carreiras causada pela compressão das amplitudes salariais preconizada pela TUR (rácio entre o salário de ingresso e o mais alto ao nível de cada GEF), reflexo de acréscimos baseados em valores absolutos uniformizados (2000, 3500, 5000 ecv), não só perecíveis dada a rápida deterioração do poder de compra como da expectativa de alcance da pensão de velhice. Se a carreira dos técnicos do regime geral previa um rácio de 1,9 (127828/65945 ecv). no PCFR de 2024 esta diferença reduz-se para 1,2 (91000/73000 ecv) ou dos professores de ensino básico e do secundário de um rácio de 2,2 (93000/41000 ecv e 125090/56255 ecv) para um rácio de 1,2 (91000/73000) e 1,5 (136000/91000 ecv) ou dos médicos gerais de 1,3 (117787/87250 ecv) e médicos especialista de 1,2 (165792/135237 ecv) para um rácio de 1,16 (158500/136000 ecv) e de 1,17 (185500/158500 ecv) respetivamente, que nos obriga a questionar a constitucionalidade da TUR, dada a redução do salário “na perspetiva do tempo”.
Por outro lado, os valores brutos de aumento salarial da base da tabela (2000 ecv) são inferiores aos aplicados nos GEF mais elevados (3500, 4000, 5000 ecv) com repercussão na injustiça na reposição do poder de compra com base no ritmo da inflação. Ajustar os índices 100 em cerca de 1% para combater a inflação resulta no aumento em 1000 ecv para quem aufere 100000 ecv, mas apenas 190 para quem aufere 19000 ecv, quando o preço do arroz é igual para todos.
Outro paradoxo dos valores brutos uniformizados de evolução salarial resulta na colisão com o princípio da gestão que sustenta a teoria de que a progressão na carreira pressupõe um ganho da eficiência (fazer mais com cada vez menos), mas, o que ocorre é uma gradual redução do acréscimo percentual relativamente ao último salário. Deste modo pagar-se-á cada vez menos a um funcionário cada vez mais eficiente.
A institucionalização dos créditos de desempenho (método inovador de pontuação) requer uma base de dados RH que garanta o registo contabilístico cumulativo ao longo da vida de uma carreira (34 anos) que hoje não existe. Por outro lado, esta contabilização ao prever um limite de 2240 créditos assume um grande risco de desmotivação na medida em que um funcionário excelente pode atingir o último escalão do seu GEF em 21 anos, estagnando-se durante os 13 anos seguintes, ora porque exige uma mudança de funções (ex. de educação de adultos para o 1º ciclo de ensino básico, ou médico geral para especialista), ora porque simplesmente não prevê evolução para um GEF acima (caso dos professores de ensino secundário e dos médicos especialistas).
Os PCFR não distinguem a evolução horizontal (vulgo progressão) da mudança de categoria (ex. técnico júnior para sénior ou destes para especialista) que exige vaga e concurso interno, mas cujos efeitos equivalem a uma mera progressão porque o aumento salarial ocorre no mesmo GEF, que nos leva a questionar qual o racional e a motivação do concurso de acesso.
Com a aprovação dos PCFR a participação em ações de formação profissional, mesmo certificada, deixa de ter qualquer repercussão na carreira comprometendo a aquisição de novas competências essenciais para a adaptação da AP às inovações do setor e o alcance de melhores oportunidades profissionais.
Apesar de eliminar a necessidade de mestrado para efeitos de promoção, os benefícios são restringidos à atribuição de créditos extra equivalente a um mero grau de evolução horizontal. Constrangimentos particularmente sentidos na carreira dos docentes e dos médicos onde as pós-graduações deveriam ser muito mais incentivadas e valorizadas.
Por fim, e não menos preocupante, assiste-se a uma vaga de imposição de PCFR com as idiossincrasias acima reveladas a toda a administração indireta, e mesmo empresas pública (e sequente extinção de estatutos autónomos) sem ter em conta as características dos setores ou uma autonomia administrativa e financeira que permitem sustentar regras de desenvolvimento na carreira, taxas de progressão, timings de resolução de pendências em atraso e amplitudes salariais mais atrativas que a TUR.
*Consultor Organizações e RH
