Todos os dias há pessoas que dependem de um gesto simples, silencioso e anónimo, mas vital: a doação de sangue. Em Cabo Verde, o sistema de transfusão vive sob pressão e o maior desafio continua a ser encontrar doadores, de forma regular, para evitar a ruptura de stock nos bancos de sangue. Enquanto a ciência não consegue substituir esse recurso vital, a solidariedade continua a ser o pilar de um sistema em que, com uma única doação, é possível salvar quatro a cinco vidas.
O sangue e os hemoderivados são fundamentais na prestação de cuidados de saúde e as transfusões podem, literalmente, salvar vidas em situações críticas. Em Cabo Verde, as transfusões são realizadas sobretudo para compensar perdas durante as cirurgias, nas complicações no parto ou para melhorar a qualidade de vida de portadores de doenças graves e crónicas. Garantir a disponibilidade de sangue depende de três fatores essenciais: estruturas físicas equipadas, recursos humanos especializados e solidariedade de doadores.
Cabo Verde tem dado passos neste sentido. O primeiro banco de sangue foi criado em 1956, em São Vicente, seguindo-se o da Praia três anos depois. Actualmente, existem bancos de sangue em todos os hospitais regionais e postos de transfusão nos centros de saúde do Maio, Boa Vista, São Nicolau e Brava. Esses serviços formam a Rede Nacional de Transfusão de Sangue, que é coordenada pelo Programa Nacional de Segurança Transfusional.
Não obstante as estruturas criadas, os recursos humanos ainda são insuficientes e faltam doadores regulares para manter as reservas de sangue e responder à crescente demanda, sobretudo em sobretudo em épocas festivas e no período de férias escolares.

Conceição Pinto
Cabo Verde precisa de 5000 dádivas por ano
Conceição Pinto, coordenadora do Programa Nacional de Segurança Transfusional (PNST), alerta que “os progressos têm sido significativos, mas ainda estamos longe de garantir 100% de dádivas voluntárias”.
A responsável destaca a importância de se aumentar a regularidade das dádivas, para manter o equilíbrio entre a oferta e a procura. De acordo com as estimativas, o país precisa de pelo menos 5000 dádivas de sangue por ano para atender as demandas, embora o consumo de sangue dependa da complexidade das actividades clínicas realizadas. “A nossa meta é alcançar uma média de duas dádivas por ano por cada dador”, destaca.
A especialista realça que “a situação demográfica, com o aumento da população idosa, e a situação epidemiológica do país, com maior prevalência das doenças crónicas, nomeadamente as oncológicas, aumentam o consumo de sangue, havendo por isso, necessidade de recrutar mais doadores”. Em 2024, foram realizadas 4568 transfusões em Cabo Verde, muitas em contextos críticos.
Apesar dessa crescente procura, o país conseguiu manter uma taxa de resposta elevada. “Quase todos os pedidos de sangue são satisfeitos. Mas é uma autossuficiência frágil, que depende da mobilização contínua de novos doadores”, alerta Pinto.
A nível global, a evolução da quantidade de doadores de sangue tem sido positiva. “Tem vindo a aumentar progressivamente ao longo dos anos, acompanhando o aumento do consumo”, salienta Conceição Pinto. Neste aspeto, destaca o apoio e a disponibilidade de instituições de ensino e empresas, que “tem sido fundamental para manter as reservas de sangue”.
Em 2024, das 3951 dádivas de sangue feitas no país, 89% foram de doadores voluntários, enquanto 11% resultaram de doadores familiares de pacientes. A maior parte dos doadores tem entre os 18 e os 44 anos, sendo 63% do sexo masculino. As ilhas de Santiago e São Vicente lideram em número de dádivas, refletindo a concentração populacional e hospitalar.
No Hospital Baptista de Sousa, em São Vicente, estão registados cerca de 10 mil doadores, embora muitos sejam esporádicos. Segundo a coordenação local, mais de 50% dos doadores fazem duas ou mais doações por ano, o que os qualifica como regulares.
No Hospital Universitário Agostinho Neto (HUAN), em Santiago, cerca de 34 mil pessoas já doaram pelo menos uma vez, mas a fidelização continua a ser um desafio. De acordo com a diretora do Banco de Sangue nessa estrutura, Linette Fernandes, “embora a maioria das dádivas seja voluntária, muitos doadores não mantêm uma frequência constante, o que dificulta o planeamento e a estabilidade do abastecimento de sangue”.
Escassez e logística são os maiores desafios
O sistema de transfusão de sangue enfrenta diversos desafios. A coordenadora do Programa Nacional destaca como os principais a escassez de doadores regulares, a falta de recursos humanos e materiais e as limitações na realização de campanhas de sensibilização. “Só conseguimos realizar uma campanha de âmbito nacional por ano. No entanto, os bancos de sangue realizam, regularmente, atividades de promoção nas escolas, empresas e comunidades, com resultados positivos”, refere Conceição Pinto.
Para a diretora do Banco de Sangue do HUAN, Linette Fernandes, os desafios também passam pela educação e sensibilização da população. “Ainda há muita desinformação e mitos sobre a doação, o que exige campanhas educativas permanentes, especialmente junto dos jovens e nas comunidades mais distantes”, defende a especialista.
A logística para o transporte de sangue entre as ilhas é outro ponto crítico. “Embora todas as estruturas possuam equipamentos adequados de armazenamento e transporte de sangue, a escassez de voos, os atrasos e o custo de transporte comprometem a agilidade da resposta em situações de urgência”, alerta Conceição Pinto.
Outro entrave relevante é a dificuldade de coordenação entre o PNST, que depende da Direção Nacional de Saúde, e os bancos de sangue sob gestão hospitalar. “Essa separação e dependência de diferentes entidades dificulta a coordenação e a gestão de recursos”, explica.
Segurança e qualidade garantidas
Apesar dos desafios, Cabo Verde mantém altos padrões de segurança transfusional, assegura Conceição Pinto. Uma das estratégias para assegurar a qualidade do sangue é priorizar os doadores voluntários. “Quando se doa por solidariedade, não há necessidade de esconder informações que podem comprometer a segurança do sangue”, explica.
Ainda assim, seguindo a legislação vigente, todos os doadores são submetidos a uma avaliação clínica e todo o sangue doado é submetido a testes rigorosos para rastrear infeções como VIH, hepatites B e C e sífilis. “Sempre que se justifique, realizamos também testes para paludismo e dengue”, afirma a coordenadora do programa.
Além disso, as unidades de sangue são fraccionadas em componentes, que são armazenados em condições específicas e distribuídos de forma criteriosa. Os componentes referidos são usados em casos distintos.
A diretora do Banco de Sangue do HAN, Linette Fernandes, explica: “As hemácias são usadas em casos de anemia, hemorragia e doenças crónicas como cancro, anemia falciforme, insuficiência renal, entre outros. As plaquetas são usadas para prevenir sangramentos em casos de leucemias agudas, patologias hepáticas (fígado) e no pós quimioterapia. O plasma usa-se quando há deficiência de fatores de coagulação, registados em casos de patologias hepáticas e hemorragias graves”.
Actualmente, o país conta com cerca de 35 profissionais envolvidos nas atividades de medicina transfusional, número considerado insuficiente e que impede a participação dos mesmos em ações de capacitação contínua.
Futuro e responsabilidade
Para melhorar o sistema de doação e transfusão de sangue, Cabo Verde prepara-se para criar o Instituto Nacional de Sangue e Transplantação e promover o desenvolvimento da atividade de transfusão no setor privado.
De acordo com Conceição Pinto, a entidade terá como missão “coordenar a dádiva, colheita estudo, armazenamento e distribuição de sangue”. Pretende-se, desta forma, aumentar a dádiva voluntária, melhorar a gestão da reserva de sangue e de outros recursos e reduzir custos. “O nosso objetivo é reorganizar a Rede, de forma a garantir o acesso ao sangue em tempo útil, em qualquer ponto do território”, explica.
No que se refere à transplantação, “o Instituto irá promover campanhas para doação de medula óssea, criar e gerir um registo de candidatos a dadores de medula óssea e coordenar os estudos dos receptores e dadores”, salienta. Outra iniciativa prevista é a implementação de um sistema nacional de notificação e investigação de reações transfusionais, visando reforçar ainda mais a segurança clínica das transfusões.
Entre os objetivos estratégicos, está o alcance de 100% de dádivas voluntárias até 2030, mas a responsável pelo PNST salienta que é preciso que a sociedade assuma esse compromisso. “O sangue não pode ser fabricado. Dependemos da boa vontade dos cidadãos para garantir uma reserva adequada para todos os que precisam de transfusão”, remata Conceição Pinto.

Linette Fernandes
Associações de Doadores: um complemento do sistema
As associações de doadores de sangue têm sido vistas como uma das soluções para complementar e apoiar o sistema nacional de transfusão. Para a diretora do Banco de Sangue do HAN, Linette Fernandes, são um “parceiro estratégico, que contribui para uma maior proximidade entre a população e os serviços de saúde, através da promoção da doação voluntária e regular, mobilização comunitária, educação para a saúde e apoio logístico a campanhas”.
Em 2021, foi criada a Associação de Doadores Voluntários de Sangue da Praia. Enquanto presidente, João Pedro Martins, referiu como prioridades o reforço das ações de sensibilização, o estabelecimento de parcerias com entidades públicas e a criação de unidades móveis de doação de sangue. Desde 2023, a associação foi assumida por Edith Cardoso, que reconhece desafios na organização interna. No entanto, realça a importância da associação. “Há doadores que completam o tempo de doação, mas acabam por se descuidar. É lá que nós entramos para lhes lembrar do compromisso que assumiram”, realça. Atualmente, a associação conta com uma base de dados constituída por 60 doadores.
Em São Vicente, foi recentemente criada a Associação Humanitária e Doadores de Sangue, que pretende contribuir para que 1 a 3% da população passe a ser doador voluntário e regular de sangue em Cabo Verde, tal como estabelece a Organização Mundial da Saúde.
Ilda Fortes
Leia na integra na edição 935 do Jornal A Nação, do dia 31 de Julho de 2025
