PUB

Colunistas

Crónica Outras Vozes, Outras Vidas: O rapaz dos dentes limados

Por: Joaquim Arena

Os esqueletos que atormentam muitas consciências portugueses sobre o seu passado colonial vêm de longa data.  E são invocados na mesma época em que o discurso sobre a pureza da ‘raça’ se mistura com o de ódio para com outros povos que passaram a ser parte da paisagem, urbana e rural, de Portugal. A ideia de ‘portuguezes de bem’ quer-se impoluta e imaculada, despida de qualquer responsabilidade histórica em relação ao passado colonial. Mas a história não se apaga. Nela cabem todos os sentimentos, mesmo o mais antigo e profundo remorso dos vencedores. Que o diga o cronista Gomes Eanes de Zurara.

Em 2010, numa época em que ninguém imaginava os delírios futuros de um jovem chamado André Ventura e a imigração não fazia parte da agenda política dos partidos políticos portugueses, visitei uma exposição, no edifício do antigo Mercado de Escravos, em Lagos, no Algarve. O tema eram os vestígios materiais e ossadas de mais de 150 corpos encontrados numa lixeira, nesta cidade. A visita fazia parte das minhas pesquisas para o livro Debaixo da Nossa Pele. Os corpos, muitos deles manietados e com visíveis sinais de fracturas, maus tratos, portanto, haviam sido descobertos numa antiga lixeira, no Vale da Gafaria, durante as obras de um parque de estacionamento. Minutos antes, eu tinha acabado de percorrer o relvado que hoje cobre o parque de estacionamento do Anel Verde, no local da antiga lixeira. De uma pequena colina, para lá das ameias das muralhas da Cerca Nova, avista-se ao longe a baía de Lagos. 

Fiquei particularmente impressionado com o esqueleto de um jovem adolescente, exposto dentro de uma caixa de acrílico. Os dois buracos no lugar dos olhos pareciam fixar-nos, como se ainda implorassem pela nossa ajuda, mais de cinco séculos depois. Duas falanges, ainda com os respectivos anéis, exibidas de dentro de outra caixa, na parede, também pareciam pertencer ao jovem preso na caixa, bem como o conjunto de missangas, anéis e colares, dispostos pela sala. Dir-se-ia que jovem africano escravizado tinha os seus pedaços e pertences, espalhados pela exposição. A descoberta mereceu uma breve referência na imprensa portuguesa. 

Na altura o país atravessava uma crise económica galopante, com José Sócrates no poder, e ia caminho da intervenção financeira internacional, com a chegada da troika no ano seguinte. Fora uma ou outra instituição académica, o impacto foi praticamente inexpressivo ou nulo. Por longos minutos passeei pela sala e tomei notas da exposição, registando e fotografando os objectos expostos. As impressões do cronista Gomes de Zurara (Crónica da Conquista da Guiné) impressas em letras grandes e em grandes painéis cobriam parte das paredes. Não me cruzei com qualquer visitante português. Sendo uma cidade turística, eram sobretudo famílias britânicas, holandesas e francesas, que por ali circulavam. Mas todos acusavam o choque ao primeiro contacto com os restos do rapaz dos dentes limados, como vinha descrito na legenda. 

Os meninos e meninas do norte da Europa espalhavam as suas impressões digitais na superfície acrílica da caixa. E todos observavam, em silêncio, a figura macabra, como numa câmara de curiosidades. Tal como o exército de terracota do imperador Shiuangdi, os cerca de 158 africanos foram ‘acordados’ do seu sono de mais de cinco séculos, pelos rodados e as pás das máquinas escavadoras. De seguida, foram exumados e distribuídos por vários locais. O rapaz dos dentes limados estará entre os primeiros africanos escravizados chegados à Europa. O mesmo é dizer, um dos primeiros inumados no primeiro “cemitério” de escravos da Europa.

E, de acordo com uma reportagem publicada recentemente no jornal português Público, terá sido capturado em Angola ou no Senegal. O princípio de uma história de vida, tal como milhões de outras, que se perdeu no tempo. Uma empresa designada por Dryas, do sector do património e com sede em Coimbra, ocupou-se do estudo dos materiais resgatados e dos vestígios ostealógicos. A busca pelas origens destes africanos, pela identificação dos seus locais de origem, é liderada pela arqueóloga Vicky M. Oelse, da Universidade de Califórnia. Este trabalho, financiado pela National Goegraphic, passa pela análise de isótopos dos dentes em fase inicial e final de formação de 66 indivíduos dos 158 encontrados na lixeira. 

O que também já se sabe é que o rapaz dos dentes limados, de acordo com esta arqueóloga, não cresceu nem viveu muito tempo em Portugal. Assim dizem os seus hábitos alimentares, que o situam entre as sociedades da África Ocidental e Central, entre o Senegal e Angola. O rapaz dos dentes limados – que apesar de anónimo, faz parte do livro Debaixo da Nossa Pele – terá integrado as primeiras vítimas do comércio de escravos levado a cabo por Portugal. O primeiro desembarque ocorreu em Agosto de 1444 e a sua venda foi seguida de perto pelo Infante D. Henrique, montado no seu cavalo. Zelava pelo negócio, já que lhe era devido a quinta parte da venda daqueles africanos. 

Tal como descreveu um ‘piedoso’ Gomes Eanes de Zurara, o cronista oficial, o espectáculo da separação das famílias, das mães dos filhos, não foi bem o que se esperava. Afinal, aqueles ‘selvagens’ africanos, gente sem fé nem salvação, também revelavam o mesmo sentido de humanismo dos portugueses: Qual seria o coração, por duro que pudesse ser, que não fosse pungido de piedoso sentimento vendo assim aquela campanha? Porque uns tinham as caras baixas e os rostos lavados de lágrimas; (…) outros estavam muito dolorosamente, olhando para os céus (…) bradando altamente como se pedissem socorro ao Pai da Natureza; outros feriam o rosto com as suas palmas, lançando-se estendidos no chão; outros faziam as suas lamentações em cantos, segundo o costume de sua terra. (…) Pelo que convinha a necessidade de se apartarem os filhos dos pais; as mulheres, dos maridos; e os irmãos uns dos outros. A amigos nem parentes não se guardava nenhuma lei, somente cada um caía onde a sorte o levava. As mães apertavam os seus filhos nos braços e lançavam-se com eles de bruços, recebendo feridas com pouca piedade de suas carnes.

O mau estar e desconforto de Gomes de Zurara, perante o drama daquelas gentes, era aliviado, como escreveu, pela ideia de uma ‘compensação final’, em forma de salvação: a oportunidade que os portugueses lhes estariam a dar ao retirá-los da ‘escuridão, da barbárie e do paganismo’, trazendo-os para a luz do cristianismo.

PUB

Adicionar um comentário

Faça o seu comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

PUB

PUB

To Top