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Diáspora

Cabo Verde e Martinica: Duas identidades no itinerário da crioulidade

O itinerário dos povos de língua crioula trouxe a martiniquesa Victória Elizabeth até Cabo Verde, com a sua equipa de reportagem. O objectivo é contar este percurso tão comum, através da língua materna, da sua música, dança, uso diário, profissões diversas, unindo os pontos de uma herança colonial e afirmação identitária. A aventura começa por Cabo Verde, que tem o crioulo mais falado em África, e segue depois por mais 11 países, neste continente e nas Caraíbas.

Em 2018, Victória Elizabeth, natural da Martinica, nas Caraíbas, começou a delinear um projecto que tinha tudo que ver com a sua cultura  ao mesmo tempo crioula e insular. E quando punha as primeiras ideias no papel, para a criação da sua Associação F’Kréyol (associação para a promoção das línguas e culturas crioulas, através de uma abordagem educacional, artística e digital) e procurava no mapa os locais do mundo onde as populações falavam uma língua crioula, viu as ilhas de Cabo Verde. Disse então para si que um dia viria até cá para visitá-las. E o ano passado, desembarcou na Praia para a primeira recolha de informações, a ‘réperage’ dos locais para a sua equipa filmar.

Victória Elizabeth

Ao mesmo tempo, procurava financiamento para o projecto sobre a língua crioula e as suas populações falantes, enviando o projecto a várias instituições e organizações. Este ano chegou com a sua equipa para mais tempo, dois meses, até o final do mês de Agosto.

O projecto consiste em abordar o itinerário da língua crioula pelo mundo, o seu uso profissional, a ligação entre as danças e a tradição, a transmissão entre as mulheres e a língua crioula. Incorpora, ainda, artistas, cantores, bailarinos, rappers, mas também jornalistas, advogados, ateliers pedagógicos para vários públicos.

“O objectivo é que quando subirem ao palco, no espectáculo, apresentem uma forma de expressão artística, uma actividade na sua língua crioula”, explica Victória.

Mas a sua ligação a Cabo Verde é mais remota. “Quando era estudante, na Martinica, tive uma professora cabo-verdiana, Maria da Silva, que me falava muito de Cabo Verde e da cultura das suas ilhas e na altura fiquei entusiasmada”, lembra.

E foi a vinda a Cabo Verde, pela primeira vez, que a levou a pensar o projecto de forma mais abrangente. “Na época, ainda estava circunscrito à Martinica e a Guadalupe. A minha vinda a Cabo Verde motivou-me a fazer tudo para conseguir esse objectivo, de visitar 12 países: quatro africanos (Cabo Verde, Senegal, Guiné Bissau e o Benim), nove da zona das Caraíbas Trinidad e Tobago, Saint Martin, Santa Lucia, Dominica, Martinica, Guadalupe, Haiti e a Guiana) e começámos por Cabo Verde.

Diferenças e semelhanças

E as diferenças entre as ilhas de Cabo Verde e estas duas ilhas das Antilhas Francesas, Martinica e Guadalupe não são muitas, como ela explica: “Nós temos um clima tropical com duas estações, das chuvas, a ‘ivernage’, e a seca; mas temos também furacões, claro. Temos a mesma capacidade de resiliência e de adaptação. Mas o que me impressionou muito em Cabo Verde é que são 10 ilhas num só país. Nas Caraíbas há umas 15 ilhas de maior dimensão, mas cada uma delas é um país diferente, cada uma fala uma língua e encontramos também um crioulo em cada uma delas. E apesar das diferenças, conseguimos entender-nos em crioulo, mesmo os não de base francesa, porque estão muito misturados.”

Victória ainda não compreende tudo no crioulo de Cabo Verde, mas compreende a maneira de ser das pessoas e a ‘prosadie’: a entoação, o ritmo, a musicalidade, a intensidade e as pausas, na linguagem. “Algumas palavras são muito próximas e o facto de habitarem em ilhas levou a que estes povos desenvolvessem contextos semelhantes: estamos próximos do mar, mas também fazemos a agricultura, temos a ambição de sermos autossuficientes, porque de um momento para o outro podemos ficar isolados do mundo e é preciso haver uma capacidade de resiliência para sobreviver nestas condições”.

A martiniquesa adianta ainda o facto de os antepassados comuns terem sido traficados, trazidos para estes territórios insulares, antes da miscigenação com outros povos, “o que faz com que o dia a dia destes povos ilhéus sejam semelhantes aos de Cabo Verde, as suas rotinas… ainda há pouco estive com um grupo de pescadores aqui de Santiago e vi que eles cozinham o peixe e fazem um molho muito parecido com o nosso, na Martinica e nas Caraíbas; mas também partilhamos outros aspectos, a música, por exemplo; podemos apreciar as músicas, o batuko, o funaná, o zouk”.

Victória formou-se em ciência política e letras modernas, com mestrado em gestão de empresas. Questionada sobre as origens deste projecto ambicioso, recorda como em casa, quando era pequena, a mãe falava crioulo e ela respondia em crioulo. “Mas agora o contexto é outro, é diferente. Quando ia à escola, não era permitido falar o crioulo. E foi preciso um grande militantismo envolvendo várias gerações, para, a pouco e pouco, o crioulo ser introduzido nas escolas, nos programas escolares. Hoje, as aulas são em francês, mas temos aulas em crioulo também.”

Crioulo versus língua de colono

 E quando descobre a realidade cabo-verdiana, o impasse e a discussão nacional em volta da língua materna, Victória responde que o problema da escrita, na Martinica, foi há muito ultrapassado, assim como nas outras ilhas. Mas, para as ilhas das Caraíbas, o crioulo do Haiti exerce uma pressão e atracção muito grandes, pois representa 12 milhões de falantes, o maior país ‘crioulo’ do mundo.

“Cada uma delas tem o seu sistema fonético, o seu dicionário, mas também não existe um consenso no sentido de alguma ‘uniformização’. Cada uma faz o seu trabalho, a luta pelo reconhecimento institucional da sua variante, estando elas em diferentes fases do processo, este não está finalizado, muito pelo contrário.”

Outra diferença entre Cabo Verde e a sua ilha de origem, a Martinica, é a convivência entre os seus crioulos e as línguas francesa e portuguesa. “Quando confrontada entre a perda de terreno do português face ao crioulo, em Cabo Verde, e a implantação desta língua materna, a nível nacional, de forma efectiva, sobretudo depois da independência, na Martinica é bem diferente.

“No nosso caso, o problema é inverso, o combate é no sentido de impor o crioulo, há cada vez mais uma forma ‘afrancesada’ de falar o crioulo, há cada vez mais palavras francesas no nosso crioulo, o francês ocupa cada vez mais espaço na sociedade, e a luta é para colocar o crioulo ao mesmo nível que o francês”, explica Victória.

No outro lado oposto está também o Haiti, em que o crioulo quase afastou o francês. Mas ela defende que o ensino de línguas diferentes não pode ser visto como um problema. “Antes pelo contrário, quanto mais línguas uma criança aprender melhor para ela e elas têm essa capacidade de aprendizagem e devem ser estimuladas nesse sentido”.

A admiração de Victória Elizabeth por Cabo Verde leva ainda a perguntar se não foi a garantia das transferências do orçamento de Paris, para estas ilhas, que desencorajou logo à partida qualquer ideia independentista. E, já agora, se o recente acordo assinado entre a Nova Caledónia e o governo francês, de uma progressão aberta da autonomia para um Estado independente, não cria entusiasmo nas Antilhas francesas. “Se foi a economia, não sei, mas esse argumento hoje não tem qualquer sustentação. Hoje os salários na Martinica são muito mais baixos que no ‘hexágono’ (França continental), os preços dos mesmos produtos são três vezes mais caros.

Estamos a sair de um período de forte contestação social, de reivindicações, houve tumultos a que se seguiram negociações. A vida na ilha é demasiado cara e a população exige estar ao mesmo nível que os outros franceses”, afirma.

O projecto sobre os povos de língua crioula começou em 2019 e hoje Victória tem a sua equipa de três elementos. Em Cabo Verde e nos restantes países irão realizar quatro filmes documentários e o objectivo, segundo ela, é a “valorização desta cultura e, se puder, mostrar os filmes em cada um desses países”.

Depois de Cabo Verde, segue-se o Senegal, a Guiné Bissau e o Benim. São Tomé e Príncipe fica de fora, dada a dificuldade dos transportes. Para este itinerário da língua crioula pelo mundo, serão contempladas as áreas da música, dança, da língua, sua utilização ao nível profissional, a relação das mulheres com a língua. “Outras ilhas do arquipélago serão também contempladas, logo que tenhamos os nossos passaportes com o visto que solicitámos”, conclui.

Joaquim Arena

Publicado na Edição 935 do Jornal A Nação, de 31 de julho de 2025

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